Nossas investigações vêm privilegiando um tipo específico de texto: a hagiografia medieval. Estamos concentrando o nosso estudo nas obras hagiográficas produzidas nas penínsulas itálica entre os séculos XI ao XIII, com base em quatro preocupações principais: a inter-relação entre as práticas e crenças da religiosidade e da religião; relacionar a produção intelectual e a organização dos centros de saber na Europa Ocidental mediterrânea; discutir o caráter didático e propagador destas hagiografias ante as reformas processadas na Igreja Ocidental sob a liderança do papado; identificar, nestes textos, discursos de gênero.

Neste sentido, partindo do pressuposto, tal como propõe Mario Stoppino, que praticamente não existe convivência social na qual o poder não esteja presente, já que, em sua definição mais elementar, poder é a capacidade do indivíduo exercer o domínio sobre outro indivíduo,[1] estamos investigando diversas relações de poder, em suas dimensões macro e micro social. Assim, em razão de nossas atuais questões de pesquisa, acima apontadas, concentramos nosso foco nas relações de entre o poder e outras instâncias, tais como o saber, o discurso, as crenças, os gêneros, as práticas, as instituições, as representações etc.

O objetivo principal deste trabalho e, portanto, demonstrar como a hagiografia pode ter a mesma relevância quanto os textos jurídicos, os diplomas, as crônicas e os tratados no estudo do poder nas sociedades ibéricas medievais. Em virtude da amplitude do tema, optamos por um corte específico: vamos nos deter no estudo dos reis nas vidas de santos de Gonzalo de Berceo, clérigo secular e poeta, que viveu na primeira metade do século XIII no Reino de Castela. Em nosso trabalho, não nos interessa discutir se as monarquias medievais foram, tal como defende Strayer, as origens do Estado Moderno. Estamos preocupados em analisar como, em um lugar particular e em um momento específico, os reis, com seus poderes e limitações, foram representados e apreendidos. A opção pelo estudo da obra hagiográfica berceana justifica-se por algumas razões principais, que passo a apresentar.

Primeiramente porque, segundo apontam García de Cortázer e Sesma Munõz, entre os séculos XI ao XIII, organizaram-se, no Ocidente, as monarquias corporativas de base territorial, ou seja, as que possuíam "... un espacio político, delimitado por fronteras y encabezado por un rey, constituido socialmente por un conjunto de corpora...".[2] Unido ao fenômeno de construção territorial, administrativa e política dos reinos, desenvolveram-se e difundiram-se teorias políticas que buscavam dar sentido e legitimidade à realeza. Logo, o século XIII, momento em que Berceo elabora suas obras, foi um período crucial na consolidação dos fundamentos das monarquias medievais ocidentais.

Em segundo lugar, porque Gonzalo de Berceo foi uma figura representativa do grupo dos scolares clereci. Ou seja, fora um dos muitos clérigos castelhanos que obtiveram, ou complementaram, a sua formação educacional em meios universitários e, munidos desta bagagem intelectual, atuaram no saeculum exercendo diversas atividades. Porém, ainda que culto, era um elemento estranho à corte e, portanto, alijado do centro do poder real castelhano.

Em terceiro, devido a própria natureza do texto hagiográfico. Por se tratarem de obras religiosas de caráter pedagógico que possuíam como objetivo primordial a edificação dos fiéis e adivulgação de centros de culto, não apresentam uma visão sistemática e coerente sobre a realeza. São, portanto, testemunhos involuntários, não tratados teóricos que buscam defender um ou outro ponto de vista acerca do poder real. Entretanto, transmitem uma perspectiva sobre a monarquia com base em um lugar social específico, que mesmo sendo estranho ao palácio, torna-se fundamental para o conhecimento da organização da realeza castelhana e sua presença no seio da sociedade.

E, como último elemento, há que destacar que, Gonzalo de Berceo, como um homem culto, escritor de obras hagiográficas que visavam uma ampla difusão, detinha um poder, calcado no saber, sobre um determinado público, agindo como uma espécie de "formador de opinião". Por meio de suas narrativas, nas quais são atribuídas funções, ações, virtudes e vícios aos reis, difundia-se uma espécie de propaganda não oficial sobre a realeza, cujo papel não deve ser ignorado. Este dado ganha particular relevância se aceitarmos a hipótese, defendida por Nieto Soria, de que somente a partir da segunda metade do século XIII desenvolver-se-á em Castela, e assim mesmo de forma tímida, uma propaganda real sistemática, que lançou mão de recursos retóricos, simbólicos, cerimoniais e artísticos.[3]

Desta forma, através do estudo das obras hagiográficas de Gonzalo de Berceo objetivamos contribuir para o frutífero debate historiográfico, desenvolvido desde a década de 80, sobre os fundamentos ideológicos do poder real em Castela, do qual participam importantes historiadores, como Teófilo Ruiz,[4] José Manuel Nieto Soria[5] e Adeline Rucquoi,[6] porém, em uma perspectiva distinta: a apreen­são, no seio da sociedade, do que seriam os elementos característicos desta monarquia. Nossa meta é, sobretudo, demonstrar como "a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos sociais".[7] Acreditamos, tal como propõe Roger Chartier, que a recepção das práticas, instituições e representações por um determinado grupo social não é um processo passivo, uma vez que implica em seleções, interpretações e adequações que acabam por produzir configurações intelectuais múltiplas.[8]

Neste sentido, a despeito das práticas, das formas institucionalizadas e das representações nas quais se organizou a realeza castelhana no século XIII, acreditamos que sua apreensão não foi unânime em todos os segmentos da sociedade. E, dentro desta perspectiva, os textos hagiográficos que foram, durante muito tempo, desprezados pela historiografia, porque os via unicamente como obras de natureza piedosa repletos de elementos fantásticos, acabam ganhando importância, já que nos auxiliam na reconstrução de como a monarquia castelhana foi compreendida em segmentos periféricos da sociedade ante a corte.

Como hipótese inicial de trabalho propomos que a realeza, tal como é representada nas vidas de santos de Gonzalo de Berceo, encontra-se calcada no pensamento político hispano, produzido nos séculos VI e VII, e em tradições orais. Esta opção por parte do autor deve-se a sua formação intelectual e ao seu lugar social como clérigo.

 

Gonzalo de Berceo e suas obras

 

Gonzalo nasceu por volta de 1196 em Berceo, uma localidade próxima ao cenóbio de San Millán de la Cogolla, um dos mais importantes da região. Neste mosteiro, como em muitos outros contemporâneos, funcionava uma escola, um scriptorium - no qual eram copiados e produzidos manuscritos - e uma biblioteca. Berceo foicriado neste cenóbio. É provável, portanto, que tenha freqüentado a escola monástica e tido acesso aos livros presentes na biblioteca.

A escola emilianense atendia tanto aos monges quanto aos meninos que eram candidatos à vida monástica, bem como aos leigos. Ali estudava-se a Bíblia, os textos patrísticos, as hagiografias, a gramática e a retórica antiga. Na biblioteca eram encontrados os livros que serviam de base para os estudos escolares e a elevação intelectual e espiritual dos monges: livros da Bíblia, comentários de passagens bíblicas, textos litúrgicos, crônicas, genealogias, calendários, regras monásticas, códigos de leis, etc. No século XIII, momento em que Gonzalo de Berceo foi educado no cenóbio emilianense, este acervo mantinha como traço marcante o conservadorismo, demonstrando uma grande fidelidade para com a tradição visigótica. Assim, é provável que o poeta tenha lido obras como as Etimologias e as Sentenças de Isidoro de Sevilha, A Cidade de Deus de Agostinho e a Lex visigothorum, todas presentes nesta biblioteca.[9]

Acredita-se, contudo, pelos dados que figuram em suas obras bem como pelas técnicas literárias que aplicou ao compô-las, que Gonzalo de Berceo complementou sua formação intelectual em uma escola urbana, com grande probabilidade, na Universidade de Palência,[10] hipótese que defenderam Brian Dutton,[11] Isabel Úria[12] e Menendez Peláez[13] e com a qual concordamos.

O studium de Palência foi um importante centro intelectual, que, por volta do início do século XIII, floresceu em Castela, sob influência francesa e com dimensão européia, e na qual os alunosrecebiam uma formação intelectual distinta da cultivada nos centros monásticos. Estava organizado em quatro cátedras - Teologia, Direito Canônico, Lógica e Artes (gramática) - e os estudos ali desenvolvidos receberam influência de Paris, Chantres, Orleãns e Catalunha, tal como é possível verificar pelos registros notariais palentinos preservados.[14]

Gonzalo de Berceo não seguiu a carreira monástica e optou pelo sacerdócio, tendo atuado em seu povoado natal. Entretanto, ainda que tenha se dedicado à vida religiosa secular e tenha completado os seus estudos em uma escola urbana, continuou mantendo vínculos estreitos com o Mosteiro de San Millán de la Cogolla, como atestam os documentos notariais, em que figura como testemunha, elaborados neste cenóbio.[15] Não há consenso entre os historiadores sobre a natureza desses vínculos e muitas hipóteses têm sido levantadas: foi notário do abade Juan Sanchez?[16] Foi mestre de confissão, atuando na igreja conventual emilianese?[17] Foi professor junto a escola do mosteiro?[18] Foi contratado pela comunidade monástica para compor poemas que estimulassem peregrinações e doações ao mosteiro?[19]

Como em alguns casos os clérigos seculares acumulavam funções e benefícios eclesiásticos com outras atividades, a fim de aumentar suas rendas, qualquer uma dessas hipóteses é plausível. O que nos parece incontestável é o fato de que Gonzalo de Berceo continuou a manter contatos freqüentes com a comunidade emilianense e suas tradições.

Contudo, não foram as relações que estabeleceu com o Mosteiro de San Millán de la Cogolla nem sua atuação como clérigo que o tornaram célebre, mas o fato de ter sido o primeiro poeta, conhecido historicamente, a escrever em castelhano. Gonzalo de Berceo é o autor de três hinos - dedicados à Virgem, a Jesus e ao Espírito Santo - além das obras Vida de San Millán de la Cogolla, Vida de Santo Domingo de Silos, Poema de Santa Oria, Martírio de San Lorenzo, Los Milagros de Nuestra Senora, Loores de Nuestra Senora, El duelo de la Virgen, Del Sacrificio de la Misa e Los Signos del Juício Final. Estes poemas encontram-se redigidos em estrofes de quatro versos alexandrinos, nos quais abundam as técnicas retóricas latinas, valendo-se tanto de fontes escritas, em latim e em castelhano, quanto em tradições orais.

De todas as obras produzidas por Gonzalo de Berceo, analisaremos, neste trabalho, a Vida de San Millán de la Cogolla (VSM) e a Vida de Santo Domingo de Silos (VSD),[20] por serem as únicas a fazerem referências aos reis ibéricos medievais.[21] A VSM narra osfeitos maravilhosos de Millán, eremita riojano que viveu no período visigótico e que é considerado o patrono de Castela, já que lhe é atribuído um milagre ocorrido no século X, quando, junto a Santiago, teria sido visto lutando ao lado dos reis cristãos contra os mouros na batalha de Simancas. Esta obra foi redigida por volta de 1230,[22] a partir das seguintes fontes escritas, compostas entre os séculos VII ao XIII: Vita Beati Emilianide Bráulio de Zaragoza; o Privilegio de Fernán Gonzalez, também conhecido como Votos de San Millán; os Anales Compostelanos; o Cronicón de Cardena; o Cronicón de Burgos; as crônicas Silense e Najerense; o Cantar de Roncesvalles; a Crônica de Alfonso III; De Translatione Sancti Emiliani e o Miraculorum Sancti Emiliani, estas últimas de autoria do monge emilianese Fernandus.

A VSD apresenta a biografia e os milagres realizados por Domingo. Este santo nasceu no início do século XI, também em La Rioja. Foi clérigo secular, eremita e prior do mosteiro de San Millán de la Cogolla. Após conflitos com o rei García de Nájera, exilou-se em Castela, onde atuou como abade reformador do cenóbio de Silos. A VSD foi escrita por volta de 1250; a obra Vitae Dominici Siliensis, redigida no final do século XI por Grimaldus, monge de Silos, foi a única fonte utilizada em sua redação.

Estas obras estavam preocupadas, fundamentalmente, em estimular as peregrinações e as ofertas dirigidas ao Mosteiro de San Millán de la Cogolla e ao Mosteiro de Santo Domingo de Silos, que se encontravam unidos por intermédio de uma carta de Hermandad desde 1190.[23] Porém, como textos de natureza hagiográfica, possuíam outras motivações: festejar e manter viva a memória de Millán e Domingo; divulgar ensinamentos espirituais e morais; entreter; servir como material de estudos e, para os que provinham de outras regiões e que não conheciam a vida e feitos dos santos, funcionavam como uma espécie de guia informativo.

Logo, tal como assinalou Cirot, ainda no início do século XX, o público das obras berceanas era variado: "Ele escrevia para os seus amigos, para seus paroquianos, para os monges, para os riojanos, para os castelhanos que vinham rezar em um ou em outro dos conventos dos dois santos regionais, São Millán e Santo Domingo de Silos..."[24]

E quanto à difusão das vidas berceanas? As obras berceanas, apesar de incluírem diversas referências à divulgação oral, estão estruturadas e contêm indicações próprias de um texto para ser lido de forma privada.[25] Acreditamos que esta duplicidade presente em seus textos - elementos orais e estruturação para leitura privada -foram previstos por Gonzalo de Berceo, que produziu poemas com diversos fins: didáticos, festivos, informativos, etc.

As obras berceanas, ainda que pudessem ser compreendidas por muitos, já que foram redigidas em castelhano, não estavam acessíveis do ponto de vista material devido ao alto custo dos livros no período e pelo predomínio do analfabetismo. Desta forma, nas festas, nas missas, no refeitório dos mosteiros, enfim, quando o público era grande, a divulgação dos poemas se realizava, certamente, por meio de uma leitura oral. Já como texto de escola ou como material para a reflexão e meditação dos monges, podemos pensar em uma leitura privada ou em pequenos grupos.[26]

Quanto à extensão do espaço geográfico de divulgação de tais obras, em virtude do próprio caráter local dos santos, acreditamos que, durante a Idade Média, não tenha ultrapassado muito além da zona riojana-burgalesa. O pequeno número de manuscritos preservados e as notícias de sua localização nos mosteiros de Silos e San Millán de la Cogolla apoiam esta hipótese.[27] Entretanto, não podemosnos esquecer que estes mosteiros eram centros de peregrinação e que, portanto, recebiam visitas, constantemente, de pessoas advindas de diversos locais. No caso específico de San Millán de la Cogolla, devido à proximidade do Caminho Francês para Santiago, muitos indivíduos que seguiam para Compostela acabavam por se deter ali para visitar, rezar e colocar oferendas no túmulo do santo patrono de Castela. Além disso, os mosteiros também funcionavam como centros de assistência aos necessitados em geral - doentes, mendigos, órfãos, viúvas - e de hospedagem. Assim, é provável que as obras berceanas tenham sido conhecidas por muitas pessoas, além dos próprios moradores próximos aos mosteiros emilianense e silense.[28]

 

Gonzalo de Berceo e a realeza castelhana

 

Não foi preservado nenhum documento que nos permita concluir se Gonzalo de Berceo manteve contatos com a realeza ou a corte castelhana. Estes contados seriam bem prováveis caso o poeta fosse membro do alto clero ou proveniente dos primeiros escalões da nobreza. Como já assinalamos, este atuou como clérigo na paróquia de Berceo, um pequeno povoado situado próximo ao mosteiro emilianense. Não há documentos que nos permitam concluir que tenha ocupado destacados cargos episcopais. Há um diploma, datado de 22 de junho de 1228, elaborado em Banares, que trata da venda de propriedades situadas em Logrono pelo então bispo de Calahorra, Juan Pérez, no qual Berceo figura como teste Don Gonzalvo de Berceo.[29 bis] Este texto notarial permite supor que o autor foi uma pessoa próxima ao bispo, mas não que foi membro da cúria episcopal ou que, junto ao prelado, participou da corte real.

Se não foi uma alta dignidade eclesiástica, Gonzalo de Berceo poderia ter tido uma origem nobre? Em todos os documentos notariais em que é mencionado ou aparece como testemunha, o poeta é apresentado como Don. Segundo Martin Alonso, este termo foi usado nos séculos XIII e XIV como "...título honorífico y de dignidad, que antepuesto solamente al nombre proprio, no al apellido, se daba a muy pocos".[29] Em um primeiro momento, foi utilizado para a primeira nobreza, posteriormente, para todos os nobres e, finalmente, para qualquer pessoa considerada "... bem portada."[30]

Nos documentos nos quais Gonzalo de Berceo é apresentado, nem todos os que figuram como testemunha recebem o título de Don. Sendo uma designação honorífica de distinção, poderemos supor que o poeta provinha de uma família nobre, ou, ao menos, de posses.[31] Varaschin discorda desta hipótese e acredita que este teria tido uma origem humilde, ascendendo socialmente através do seu ingresso na vida eclesiástica. De qualquer forma, mesmo tendo nascido em uma família nobre, não é provável que fora oriundo da alta nobreza e, portanto, não participara da vida cortesã.

Dos 12 diplomas preservados em que o autor figura como testemunha, nenhum deles provém da chancelaria real. Tampouco o autor inclui em suas obras dados sobre um possível encontro com soberanos. Como apresenta em seus poemas algumas referências às pessoas e aos lugares que conheceu, é possível pensar que no caso de ter tido contatos com monarcas, certamente incorporaria tais notícias em seus poemas.[32] Também não há notícias de grandes instâncias de soberanos em La Rioja ou visitas ao mosteiro de San Millán de la Cogolla ou ao povoado de Berceo. Nos diplomas reais preservados, há registro de doações a igrejas e cenóbios riojanos, mas que foram redigidos fora desta re­gião.[33] Há que sublinhar que a primeira metade do século XIII foi marcada por diversas campanhas militares, mormente visando a Reconquista, ao sul do reino, o que levou os soberanos a permanecerem nestas áreas.[34]

Os dois primeiros bispos riojanos do século XIII, Juan de Préjano e Juan de Agoncillo, participaram da corte, acompanhando os reis Afonso VIII e Enrique I por todo o reino. Entretanto, esta situação mudou depois da eleição do bispo Juan Pérez de Segóvia, após uma longa crise sucessória, em 1220. Entre a eleição e a consagração do prelado, em 1227, foram constantes as intromissões dos leigos em questões eclesiais, sobretudo de uma das principais famílias nobres de Castela, os Haro, apoiados pelo próprio rei castelhano; o bispo não foi reconhecido oficialmente por parte dos reis de Castela e Navarra, o que redundou na perda ou suspensão de diversos direitos e privilégios episcopais. E mesmo após a consagração do bispo, as relações entre o rei Fernando III e Juan Pérez mantiveram-se tensas, em especial em virtude do traslado da diocese de Calahorra para Santo Domingo de la Calzada. A tranqüilidade nas relações entre o bispado de Calahorra e a realeza castelhana só foram restabelecidas com o prelado Aznar, eleito em 1238.

Como assinalamos anteriormente, por ter sido testemunha de uma das transações realizadas por Juan Pérez, Berceo, mesmo que não tenha sido amigo pessoal do prelado, era uma pessoa próxima ao bispo. Logo, é possível que tenha estado informado sobre estes conflitos entre a diocese e o rei.

Além das tensões específicas vividas entre o rei e a diocese calagurritana, os clérigos desta região, assim como os demais ecle­siásticos castelhanos, foram convocados a pagar impostos especiais ao rei, por períodos de três anos, em 1236 e 1247, a fim de financiar as constantes lutas entre os reinos cristãos e a expansão da Reconquista.[35]

Concluímos, portanto, que Gonzalo de Berceo nunca participou da vida da corte e, provavelmente, sequer teve um contato mais próximo com a realeza, já que sua formação intelectual e atividade sacerdotal se desenvolvera ao norte da Península, enquanto os reis, especialmente devido ao avanço da Reconquista, encontravam-se ao sul, em Andaluzia. Porém, como clérigo de Calahorra, estava inteirado dos conflitos entre o rei Fernando III e o bispo Juan Pérez. Foi justamente entre 1230 e 1250, o período em que as relações entre a Igreja calagurritana e a realeza castelhana foram mais tensas, que o poeta redigiu a VSM e a VSD. Sem dúvida, tal conjuntura o influenciou ao representar os monarcas nestas obras.

 

A realeza nas vidas de santos de Gonzalo de Berceo

 

As vidas de santos berceanas possuem como objetivo fundamental, como já assinalamos, recordar e engrandecer a Millán e Domingo. Desta forma, os soberanos figuram nestas obras não como protagonistas, mas personagens secundários. Como não são textos teóricos ou dissertativos, mas sim narrativos, os monarcas citados pelo poeta ou participam de algum episódio relatado nas obras ou são mencionados, genericamente, em versos dispersos que ou apresentam comentários pessoais do narrador, ou citam textos bíblicos, ou incorporam ditos populares ou, ainda, utilizam a realeza como metáfora.

Faz-se importante ressaltar que os monarcas mencionados nas vidas de santos berceanas não se limitam aos que reinaram em Castela durante a Idade Média. Gonzalo de Berceo também faz referências aosreis de Leão e Pamplona[36] e aos que considera hereges e infiéis. Aqui, concentraremo-nos no estudo crítico dos relatos em que figuram soberanos hispano-cristãos; a saber, a Batalha de Simancas; o exílio de Domingo e García de Nájera; as relações entre Fernando I e a Igreja Castelhana; os conflitos entre Alfonso VI e os cavaleiros de Fita. Vamos estudar cada uma dessas narrativas, identificando que ações, atributos, funções e virtudes reais aparecem de forma mais constante, reconstruindo, assim, a representação berceana da realeza.

 

A Batalha de Simancas

A Batalha de Simancas, com os acontecimentos que a antecederam, é apresentada, na VSM, entre as estrofes 362 a 457, como o quinto milagre realizado por Millán após a sua morte. Segundo informa esta obra, os muçulmanos oprimiam aos cristãos. Deus, indignado pela omissão dos seus, enviou alguns sinais maravilhosos para alertá-los de seus erros. Os cristãos, então, arrependeram-se e negaram-se a pagar o tributo imposto pelos muçulmanos que, segundo Berceo, era a entrega de 60 donzelas anualmente. Começaram, então, a preparar-se para a guerra. Como represália, os muçulmanos liderados por Abderraman invadiram as terras leonesas. O rei Remiro de Leão,[37] então, convocou aliados- Ferrán Gonçálvez, duc de Castela, e García, sennor de pomploneses - e armou-se para a batalha. Antes, porém, o rei Remiro instituiu os votos, ou seja, o pagamento periódico de ofertas a Santiago. Ferrán Gonçálvez, seguindo o exemplo do leonês, estabeleceu, para Castela, o pagamento de votos a San Millán. Assim, no momento do combate, os santos surgiram para auxiliar os cristãos, que saíram vencedores.

Segundo os Anales Compostelanos, a batalha de Simancas teria ocorrido no verão de 939, por ocasião de campanhas militares que opuseram os cristãos aos muçulmanos, que incluíram confrontos em Aza, Hacinas e Toro. Estiveram envolvidos nesta guerra o califa Abderraman III (912 -961), o rei leonês Remiro II (930? - 951), o conde castelhano Ferrán Gonçálvez (930-970) e o rei García Sanchez I de Navarra (926-970).[38] Para compor a sua narrativa sobre esta batalha, Gonzalo de Berceo utilizou diversas fontes. Entretanto, como sublinha Brian Dutton, "ningún texto conocido contiene todos los detalles tal como se presentan en la obra de Berceo".[39] O poeta, mesmo usando dados presentes em outros textos, os refundiu, criando um produto novo, original em muitos aspectos.

Como o combate narrado opôs cristãos e muçulmanos, como já sublinhado, o traço mais marcante destes versos é a ênfase dada pelo autor aos contrastes entre as características e os comportamentos apresentados pelo califa ante os dos líderes hispano-cristãos Remiro e Ferrán Gonçálvez. Vamos sublinhar os traços distintivos mais relevantes.

Ferrán Gonçálvez e o rei Remiro são apresentados como cathólicos (VSM 396c), ao passo que Abderraman é identificado como o senor de los paganos, un mortal enemigo de todos los christianos (VSM 369ab). O poeta faz, portanto, uma associação entre paganismo-islamismo e o cristianismo-catolicismo que indica mais do que uma opção religiosa, pois representa a demarcação da identidade dos hispano-cristãos perante os seus inimigos muçulmanos e, de certa forma, legitimava e justificava a postura rebelde dos cristãos que se negaram a pagar o tributo e os próprios embates militares.

Ser cristão era, sem dúvida, um atributo real essencial na perspectiva de Gonzalo de Berceo, um clérigo. Porém, mais do que cristãos, o autor ressalta que Ferrán Gonçálvez e o rei Remiro eram cathólicos, termo que no castelhano do século XIII denominava o indivíduo que professava a religião pregada pela Santa Igreja Roma­na. Assim, este termo, presente nas crônicas silenses e najerenses referindo-se somente a Remiro,[40] é, na VSM, estendido ao conde castelhano. Ao ressaltar o caráter católico da fé dos reis hispanos, o autor parece realçar a harmonia destes para com a Igreja de Roma, que apesar de encontrar-se no auge de seu poder nas primeiras décadas do século XIII, momento em que é redigida a VSM, ainda mantinha conflitos com os poderes seculares ocidentais.

Porém, as diferenças entre os chefes cristãos e muçulmanos não se limitam ao campo religioso, apesar de estarem fundamentadas, na visão berceana, na fé. Desta forma, enquanto Abderraman busca somente o conselho humano dos que o cercam (VSM 400-402); acredita na mensagem dos astros (VSM 403-404); e confia na superioridade numérica de seu exército (VSM 407-410); os cristãos agem com sabedoria. Não uma sabedoria qualquer, mas aquela induzida por Deus. Assim, Remiro anseia pelo conselho dado por Deus (VSM 424c) e, sob inspiração divina, era um omne anviso (VSM 460b).[41]

Ao negar-se a pagar os tributos, o soberano leonês expôs-se ao ataque dos muçulmanos, muito superiores em número. Todavia, não agiu com leviandade, mas com prudência, pois como aponta o poema, começou a preparar-se com antecedência para o possível confronto (VSM 399), depositou em Deus sua confiança (VSM 418), e, no que foi seguido por Ferrán Gonçálvez, instituiu os votos a Santiago, certo de que sua força não vinha de suas condições humanas, limitadas, mas das forças sobrenaturais.

Por estarem certos da ajuda divina, os monarcas nas obras em estudo são guerreiros corajosos, que não fogem à luta. Segundo Gonzalo de Berceo, Remiro era um "noble cavallero, qe no l' venzrién d'esfuerzo Roldán nin Olivero" (VSM 412a) e Ferrán Gonçálvez, "conde muy valíado" (VSM 395b) e que de bom grado desejava "entablar la batalla con essa muzlemía" (VSM 417cd). Ao contrário, Abderraman abandonou o seu exército e fugiu quando os mouros começaram a perder a batalha, agindo, portanto, como um verdadeiro covarde e, sobretudo, sem responsabilidade para com os seus súditos (VSM 449-450). Quanto aos soberanos católicos, verdadeiros guias de seu povo (VSM 396ab), confiantes em Deus e resistindo bravamente, alcançaram a vitória (VSM 418, 432).

Além de covarde, Abderraman demonstrou ser um mal senhor, conduzindo-se com deslealdade ao abandonar os seus vassalos em meio a batalha. Sublinha Berceo: "Desamparou no campo toda a sua vassalagem,/ muito homem de valor e de muito boa linhagem/ com pouco dinheiro pagou a hospedagem, / não quis enviar outro com esta mensagem" (VSM 450). Já os soberanos cristãos foram justos para com os seus: dividiram o botim, sem se esquecerem de doar bens para a Igreja (VSM 458-459), e consultaram o conselho, formado pelos nobres laicos e as altas autoridades eclesiásticas, antes de tomar decisões importantes. Assim, a instituição dos votos a Santiago, por exemplo, apesar de ter sido uma idéia original do Rei Remiro, só foi concretizada após a sua aprovação pela assembléia de leigos e clérigos (VSM 420-425), o que também ocorreu no caso castelhano (VSM 426-432).

E quanto a García Sanchez I, o outro rei hispano-cristão que figura na narrativa? Apesar de cristão, este monarca recebe menor destaque do que o próprio Abderraman na narrativa, sendo citado somente em uma estrofe e em tom de crítica (VSM 414). Segundo a VSM, Remiro teria convocado tanto a Ferrán Gonçálvez quanto a García para o auxiliarem na batalha contra os muçulmanos. Entretanto, ao passo que o conde castelhano prontamente atendeu ao chamado do monarca leonês, o rei de Pamplona mandou avisar que iria ao encontro dos leoneses somente após dois meses. Como compreender este contraste entre a postura dos castelhanos e a dos pamploneses apresentada por Gonzalo de Berceo?

La Rioja foi, por séculos, palco de contínuas disputas, saques e domínios sucessivos de castelhanos, aragoneses e navarros.[42] Após o início de sua reconquista efetiva, nas primeiras décadas do século X, esta área foi parte integrante do reino pamplonês por cerca de 150 anos. Pertenceu, de 1076 a 1109, a Castela, de 11094 4a 1135, a Aragão, novamente a Castela, de 1135 a 1162, a Navarra,[43] de 1162 a 1176, e definitivamente a Castela após 1176.[44]

Na VSM, Gonzalo de Berceo busca reforçar a relação Castela-San Millán, não Pamplona-San Millán. Como castelhano, o autor omite e renega o passado navarro de La Rioja. Assim, os pamploneses, de fato, os senhores do mosteiro emilianense no século X, acabam sendo eliminados da narrativa sobre a instituição dos votos a San Millán, cuja iniciativa passa ao castelhano Ferrán Gonçálvez. Neste sentido, ainda que outras fontes atestem a presença de pamploneses na Batalha de Simancas,[45] na VSM não há qualquer menção explícita sobre a sua participação, só a resposta de García, que demostra um certo descomprometimento deste rei para com os demais cristãos.

É nítido o preconceito de Gonzalo de Berceo em relação aos navarros. Assim, de todos os líderes hispano-cristãos que apresenta no relato da batalha de Simancas, García Sanchez é o único que é caracterizado como senhor de um povo, dos pamploneses, não o monarca reinante sobre um território (VSM 414). Esta identificação por parte do poeta poderia indicar que, na sua perspectiva, Pamplona ainda não seria, ao menos no século X, um reino propriamente dito. Além disso, é provável que ao escrever tais versos, este autor ainda mantivesse viva a lembrança de que, nos últimos anos do século XII, foram constantes as guerras entre Castelae Navarra e que este reino chegou a aliar-se aos almohadas.[46] Desta forma, na narrativa, os dois chefes cristãos exemplares são Ferrán Gonçálvez e Remiro e as qualidades por estes demonstradas é que são contrapostas às de Abderraman.

O último aspecto que gostaríamos de realçar é o fato de que, no século X, momento em que teriam ocorrido os sucessos narrados por Gonzalo de Berceo, Castela, organizada como um condado, era uma área de expansão do Reino Leonês. Porém, a VSM trata os reinos de Castela e Leão como duas unidades políticas autônomas e independentes: "(...)"(...) el duc' Ferrán Gonçálvez, conde muy valíado, (...)/ Del regno de Castiella ésti era guíón,/ el reí don Remiro era sobre León (...)." (VSM 395b, 396ab). Assim, embora o primeiro, mesmo não sendo de direito um soberano, é representado nesta obra como tal.

Como já assinalamos, Gonzalo de Berceo, com grande probabilidade, escreveu a VSM por volta de 1230, ano em que Castela, já instituída como reino, uniu-se a Leão. Apesar de governados pelo mesmo monarca, Fernando III, cada reino manteve suas instituições políticas separadas. Desta forma, mesmo que o poeta tenha composto tais versos após a união desses reinos, apresentá-los como dois reinos distintos pode revelar o quanto os contemporâneos estavam bem informados sobre as questões político-administrativas do momento ou sinalizar uma certa resistência em considerar esta união um fato.

Mais do que tratar a Ferrán Gonçálvez como rei de uma unidade territorial autônoma e independente de Leão, o poeta aponta que Castela era a continuação natural do Reino Visigodo: " Diólis en est' comedio un senor venturado,/ el duc' Ferrán Gonçálvez, conde muy valíado, ca fallieron los reys, tan grand fue el pecado/ el regno de Castiella tornara en condado " (VSM 395). Segundo Brian Dutton, esta estrofe apresenta uma versão original da História de Castela que não é encontrada em nenhum texto escrito precedente.[47]

Estes versos nos permitem inferir que, para Gonzalo de Berceo, era esse reino, não Leão, o centro da reconstrução da antiga monarquia visigoda. Ao ligar Castela ao passado visigótico, o autor resgata as teorias políticas formuladas neste reino germânico, tornando-as aplicáveis em seu momento. Por fim, ao informar que o reino visigodo fora reduzido a um condado porque seus reis anteriores haviam pecado, reafirma que a realeza é uma criação divina que pode ser interrompida por causa do erro daqueles que ocupam o cargo de monarca, ainda que estes tenham sido levantados pelo próprio Deus.

Isto significa que para Gonzalo de Berceo os soberanos eram falíveis. Estes, tal como todos os outros indivíduos, possuem fraquezas. Desta forma, aponta que Remiro sentiu medo face ao ataque dos inimigos, mas foi fortalecido por Deus (VSM 412 e 418). Marcando o caráter humano dos reis, o poeta ressalta a necessidade de interceder pela alma dos monarcas para que estes alcancem o paraíso (VSM 396). Os soberanos berceanos, como Remiro e Ferrán Gonçálvez, não são, portanto, seres mágicos, infalíveis ou imortais. Porém, são sagrados, já que são escolhidos e mantidos por Deus em sua tarefa de governar.

 

García de Nájera e o exílio de Domingo

 

O rei García IV de Nájera era o filho primogênito de Sancho III, o Maior. Por ocasião da morte de seu pai, herdou o trono de Pamplona e governou de 1035 a 1054. Neste momento, La Rioja pertencia ao reino pamplonês, cuja corte residia na cidade de Nájera. Durante o seu governo, ampliou o território de seu reino conquistando Aragão, que havia sido entregue a seu irmão Ramiro, e reconquistou Calahorra, até então, terra muçulmana. Também lutou contra seu outro irmão, o rei Fernando I de Leão e Castela, que também figura na VSD. Foi justamente na batalha de Atapuerca, em que esses dois irmãos se enfrentaram, que García veio a falecer.[48]

A VSD, nas estrofes 126 a 185, relata um episódio da vida deste rei: os conflitos mantidos com Domingo, que culminaram no exílio deste santo. Após uma pequena introdução, em que o poeta anuncia o tema do relato que irá iniciar, é feita uma apresentação do rei García de Nájera. A partir daí, o autor passa a narrar uma visita deste rei ao Mosteiro de San Millán de la Cogolla, ocasião em que este procurou retomar bens que haviam sido doados por seus antepassados a este cenóbio. Domingo, então prior do mosteiro, negou-se a entregar o exigido pelo monarca. O rei, ofendido, fez diversas ameaças, retirando-se irado. Posteriormente, o soberano pamplonês exigiu do abade emilianense providências, que não tardaram a vir: Domingo é enviado, consecutivamente, a três mosteiros pequenos e pobres. Cerca de seis meses depois, o rei volta a encontrar-se com Domingo, para cobrar-lhe um grande tributo. Como o religioso afirma que não tem como pagá-lo, opta pelo exílio em Castela, onde é bem recebido por Fernando I.

Gonzalo de Berceo baseou-se em sua fonte latina para compor estes versos. Entretanto, faz diversas adições e amplificações: reconstrói os diálogos já presentes na fonte, cria outros e acrescenta novas características aos personagens. Logo, ainda que se mantendo fiel ao texto de Grimaldus em seus elementos básicos, dá-lhes uma nova roupagem, atualizando-os.

García de Nájera é apresentado na VSD como ""Uun firme cavallero, noble campeador,... de bonas manas, ... avié cuerpo fermoso, sobra bien raçonado, en lides venturoso" (VSD 127c-128ab). O autor também ressalta que este conquiso Calaforra (VSD 129b). A estes dados, já presentes em Grimaldus, Gonzalo de Berceo acrescenta outros: informa que este rei, em razão das suas qualidades guerreiras, " Fiço a mucha mora bibda de su esposo " (VSD 128C); acrescenta que Calahorra, a cidade reconquistada, era a sede do bispado e qualifica este ato como muito mais do que uma vitória militar, uma vez que " Ganóli su eglesia a la Virgen María, dioli un grand servicio a Dios en essi día " (VSD 129 cd).

Como no relato anteriormente analisado, o poeta também ressalta as qualidades guerreiras apresentadas pelo monarca. Porém, sea Batalha de Simancas foi ganha graças à intervenção divina direta, por intermédio de Santiago e San Millán, no caso de García de Nájera o autor parece querer sublinhar a ação do rei em prol da Igreja, em especial do bispado, ao tomá-la dos muçulmanos. Certamente Gonzalo de Berceo conhecia as atividades militares do rei García, que incluíram oponentes cristãos e muçulmanos. Porém, ao realçar que este fizera muitas mouras viúvas, parece querer reduzir os inimigos deste monarca aos infiéis. Neste sentido, não há como ignorar o caráter de reconquista que o autor imprime às atividades bélicas deste rei.

A reconquista foi mais do que um fenômeno de caráter político-militar, patrocinado pelos cristãos peninsulares, que visava a aquisição de novas terras e que implicou no afrontamento entre cristãos e muçulmanos, do VIII até o XV século. Foi também um fenômeno ideológico. Assim, "(... ) el término de reconquista (... ) solo tiene algún sentido para el período posterior al siglo XI, [quando ]... la idea de la reconquista es entendida como la recuperación de unos territorios sobre los que se creía tener direto, como la cruzada".[49]

Na perspectiva ideológica da Reconquista, os embates bélicos são justificados pelo fato do muçulmano não ser um mero oponente político, mas um infiel, ou seja, um elemento que nega e, consequentemente, põe o cristianismo em perigo. A guerra, portanto, visava mais do que a conquista de territórios e riquezas: objetivava a cristianização. Quando Gonzalo de Berceo compôs estes versos, a reconquista de La Rioja já estava acabada, mas o seu espírito ainda continuava vivo e alimentando as campanhas militares em curso no sul da Península Ibérica. Desta forma, o autor não ignora esta característica real: ser um conquistador de terras muçulmanas. Esta tarefa porém, na perspectiva do poeta, tinha uma meta: agradar a Deus.

Apesar de possuir qualidades, o rei García também apresentava, segundo a VSM, um grande defeito: era cobdicioso (VSD128d). Assim, movido pelo pecado da cobiça, agiu sem sabedoria ao exigir bens do Mosteiro de San Millán de la Cogolla. No diálogo fictício entre o rei e o santo, construído por Gonzalo de Berceo, ao passo que o soberano argumenta que detém poder para usar as riquezas do mosteiro, Domingo o critica por empregar o poder temporal para usurpar os bens eclesiásticos e afirma que esta atitude implicará em correção divina: "Lo que una vegada a Dios es ofrecido,/ nunqua en otros usos deve seer metido; / qui ende lo cambiasse serié loco tollido,/ el día del Judicio seriéli retraído " (VSD 139).

O mais interessante é que, em seu discurso, Domingo recomenda ao rei não tomar as rendas do mosteiro, já que possuía, como soberano, outras fontes legais de riqueza, como os tributos: ""Senor, bien te consejo que nada non end prendas,/ vive de tus tributos, de tus derechas rendas;/ por aver que non dura la tu alma non vendas,/ guárdate ne ad lapidem pedem tuum ofendas" (VSD 141).

Nos versos que contém as palavras fictícias atribuídas a Domingo pelo poeta, é realçado o fato de que, para governar, os monarcas possuem alguns direitos. Além dos impostos, já apontados, indica-se que o soberano poderia aplicar a justiça, ou seja, formular leis e zelar pelo seu cumprimento, além de castigar os que se rebelam contra a sua soberania. Em nenhum desses versos a autoridade dos reis é questionada, mas denuncia-se a tudo o que foi interpretado, pelo poeta, como abuso de poder.

As críticas dirigidas por Domingo ao rei García de Nájera, frutos da "novelização" elaborada por Berceo, estavam totalmente em sintonia com os problemas enfrentados pela Igreja castelhana e, especificamente, pelo bispado de Calahorra, como já assinalamos. Como não ver nas palavras atribuídas ao prior, na VSD, um desabafo do próprio poeta, um clérigo, ante aos abusos cometidos pelos leigos em sua diocese, consentidos pelo rei, que levaram à usurpação de bens materiais e que redundaram, inclusive, em vítimas fatais? " Puedes matar al cuerpo, la carne maltraer,/ mas non as en la alma, rei, ningún poder;/ dizlo el evangelio que es bien de creer,/ el qui las almas judga, essi es de temer " ( VSD 153).

Inspirado em acontecimentos contemporâneos, o poeta adicionou elementos novos ao relato de sua fonte latina. Ao referir­se à acusação real, ocorrida meses após a primeira visita de García de Nájera ao mosteiro emilianense, enquanto Grimaldus afirma que o santo fora condenado porque se negara a entregar possíveis doações que, segundo o rei, haviam sido feitas ao prior, Gonzalo de Berceo diz que o monarca cobrara ao santo um grande tributo. Vejamos os textos.

Enquanto na VDS lemos: " En efecto, apenas transcurrido medio ano, dirigiéndose el Rey de nuevo hasta él, con una carencia total de vergüenza humana le exegía, por instigación del diablo, las riquezas que el hombre de Dios ni tenía ni había recebido de persona alguna.. " (VDS I, V, 405-406); na VSD, afirma o narrador: "Mas non podié el rey oblidar el despecho,/ por buscarli achaque andával en asecho;/ ante de medio ano echóli un grand pecho,/ cuidó por esta mana aver délli derecho" (VSD 173).

Pagar grandes tributos era, certamente, um motivo de descontentamento e preocupação por parte dos clérigos castelhanos, e, dentre estes, encontrava-se Gonzalo de Berceo, que, como já informamos, estiveram submetidos a cobranças periódicas de impostos reais especiais na primeira metade do século XIII. O poeta, então, adaptou os dados de sua fonte, transformando o seu relato em um verdadeiro veículo para a denúncia e crítica aos pechos exigidos pelo rei e aos abusos laicos ocorridos em sua diocese.

Neste episódio narrado na VSD, as relações entre realeza e Igreja ocupam um papeI de destaque. Nele, a postura dos monarcas em face das questões clericais é um elemento fundamental para a sua caracterização. Desta forma, García de Nájera, mesmo possuindo diversas virtudes e, dentre elas, conforme destaca a própria obra, ter lutado contra os muçulmanos e reconquistado Calahorra, por ter cobiçado os bens do Mosteiro de San Millán, acabou recebendo um tratamento negativo. Já Fernando I de Castela, que surge ao final do relato, é apresentado como a antítese do rei García porque acolhe, com honras, a Domingo.

Segundo aponta Labarta de Chaves, "García fue piadoso y muy generoso con la Iglesia, especialmente con el monasterio de San Millán".[50] Foram preservados diversos documentos notariais nos quais há registros de doações deste soberano aos mosteiros riojanos e ao episcopado calagurritano.[51] Entretanto, baseado nos dados presentes já em Grimaldus, Gonzalo de Berceo acabou, como assinala Ruiz Dominguez, fabricando um caráter para García de Nájera que não tinha nada de vantajoso: na VSD este monarca é dominado pela cobiça, tornado-se o perseguidor de um homem inocente.[52]

Poderíamos atribuir este tratamento dispensado ao monarca najerense na VSD aos mesmos motivos que levaram o autor a criticar ao rei García Sanchéz I na VSM? Sem dúvida, sua antipatia ante aos navarros não deve ser de todo desprezada. Porém, acreditamos que, neste episódio em particular, Gonzalo de Berceo, pautando-se nas notícias presentes na fonte latina, optou por transformar García de Nájera em um modelo negativo de soberano, justamente porque, em sua perspectiva, este ultrapassou os limites que dividiam o zelar pela Igreja com o interferir na vida eclesiástica.

 

Fernando I e a Igreja Castelhana

As relações entre Fernando I e a Igreja Castelhana são abordadas em três episódios distintos na VSD: a eleição de Domingo como abade do Mosteiro de São Sebastião de Silos, o Traslado das relíquias dos Santos Vicente, Sabina e Cristeta e a ajuda dispensada ao Mosteiro de Silos durante uma época de carestia. Todos estes relatos, como no caso anterior, tomam o texto de Grimaldus como base, porém, Gonzalo de Berceo rearruma a ordem dos acontecimentos, cria diálogos e discursos, inclui detalhes novos etc. Assim, ao narrar a eleição de Domingo como abade de Silos, o que faz nas estrofes 186 a 221, coloca, em primeiro lugar, a oração do monge Liciniano, queclama a Deus por uma reforma no mosteiro silense, e, só depois, inclui os acontecimentos ligados a escolha do novo abade.

Segundo a tradição, o mosteiro de Silos teria sido fundado pelo rei visigodo Recaredo em 593. O primeiro documento preservado que apresenta referências a este mosteiro, porém, data de 919.[53] É provável que, como ocorrera com outros mosteiros ibéricos, este fora reorganizado no início do século X. Entretanto, após as campanhas de Almanzor, este cenóbio ficou praticamente abandonado.

Gonzalo de Berceo elaborou uma oração em que Liciniano, movido pelo "pesar e coita" (VSD 191c), declara a sua tristeza e vergonha por ver que o mosteiro, que fora tão rico e com rígida disciplina, encontrava-se em estado lastimável. Ele clama a Deus para que envie um pastor que "ponga esta casa en estado mejor. O autor, então, diz que em resposta a esta prece, Deus "aspiró em el rey" (VSD 199c) para "dar el monesterio al precioso baron" (VSD 200b).

Após ter esta idéia, em VSD 201 somos informados que o rei, antes de instituir Domingo como abade de Silos " Fabló com sus barones, com los mayores príncipes, e com los sabidores ". Dentre os muitos argumentos criados por Berceo para compor o discurso fictício de Fernando I, encontra-se: "Es por un monasterio un regno captenido,/ ca es días e noches Dios en élli servido; assí puede seer um regno maltraído/porá lugar bono, si es esperdecido" (VSD 204). Ou seja, exalta a relação entre uma vida monástica rigorosa e um reino abençoado.

Fernando I foi um importante patrocinador da Reforma Eclesiástica na Igreja Ibérica.[54] Foi o responsável por convocar o Concílio de Coyanza, realizado em 1055, que reuniu representantes, clérigos e leigos, de todos os reinos hispano-cristãos.[55] Este concílio tratou de iversas questões eclesiásticas, tais como a desobediência dos abades aos seus bispos; intromissão dos leigos na vida eclesiástica; cor­reção das negligências litúrgicas; uso de tonsura clerical, uniformização da vida monástica, dentre outras. A reforma eclesiástica proposta em Coyanza foi o ponto de partida para reorganização e fortalecimento do clero secular e regular hispano.

É com este espírito reformador que Gonzalo de Berceo apresenta Fernando I em sua obra. Porém, este monarca, na VSD, jamais age sem o consentimento das autoridades eclesiásticas. Assim, segundo o poema, após consultar o conselho, o rei levou a questão ao bispo que "tóvolo... por muy bono sobejo (VSD 209 b). Desta forma, Domingo, antes de tomar posse do cargo de abade do Mosteiro de Silos, foi reconhecido pelo bispo: "Confirmólo el bispo, dioli ministramiento,/ desende lo bendixo, fiçol su sagramiento;/ dioli siella e croça, todo su complimiento,/ fíçol obedíencia de grado el conviento" (VSD 211).

Após o aceite e benção do bispo, o rei enviou Domingo para o Mosteiro de Silos com uma grande comitiva de "Bonos omnes e altas podestades, clérigos e calonges, e benitos abades, mancebiellos e viejos, de diversas edades" (VSD 214abc). Gonzalo de Berceo ressalta que assim que o novo abade assumiu a direção do mosteiro, este foi, com a ajuda de Deus, todo reformado.[56] O poeta ainda sublinha, com certeza para acentuar, ainda mais, a diferença entre Fernando I e García de Nájera, que o primeiro, assim como o povo, vinha sempre ao mosteiro para participar das missas e ouvir Domingo.

A segunda ação do rei Fernando I favorável à Igreja foi o traslado das relíquias de São Vicente e suas irmãs, Sabina e Cristeta, narrado nas estrofes 262 a 275. Este ato do monarca, como o anterior, também nasceu da iniciativa de um eclesiástico, García, abade de San Pedro de Arlanza. Este, após ter uma visão, solicitou ao rei que transportasse de Ávila, local onde, segundo a tradição, os santos foram martirizados durante a perseguição de Diocleciano, para Arlanza. O soberano "tóvolo por buen seso e por fecho fermoso " (VSD 268 c). Assim, foi organizado o traslado, com grande procissão, da qual participaram, segundo o relato, autoridades eclesiásticas e civis, clérigos de todos os graus, monges, cavaleiros, "grandes infançones e pueblos menudos" (VSD 270ab), homens e mulheres.

O terceiro episódio está relatado nos versos 444 a 462. Apresenta como o rei Fernando I socorreu o Mosteiro de Silos durante a carestia de 1043, que assolou a Península Ibérica e a Gália. A curta narrativa informa que ao estar ciente de que praticamente todas as provisões do mosteiro haviam terminado, Domingo prostrou-se ante o altar e rogou a Deus por uma solução. Pouco tempo depois, chegou ao cenóbio um mensageiro do rei trazendo alimentos.

Estes três episódios, ainda que diferentes quanto ao tamanho e temática, possuem alguns pontos em comum. Todos tratam de questões relacionadas à vida eclesiástica; o monarca ocupa um papel importante em todas as situações, seja tomando decisões ou concedendo favores; a ação do rei, nos três eventos, é sempre uma resposta às iniciativas de religiosos: sejam orações, como as de Liciniano e de Domingo, ou um conselho, como no caso do abade de Arlanza.

Neste sentido, de todos os reis que figuram nas obras berceanas, Fernando I é o que mais recebe epítetos elogiosos: "príncep de bona vida" (VSD 199c); "el rei del buen tiento" (VSD 201a); "el reí don Fernando, de Dios sea amado" (VSD 213a); "muy bien ensennado (VSD 213b); bendicho sea rey que faz tales bondades" (VSD 214d); "el rei don Fernando, sea en paradiso" (VSD 219a) "el reí don Fernando, siempre amó bondad" (VSD 263a); "rey al que Dios dé bon poso" (VSD 268a); "Fernando, un príncep muy

precioso" (VSD 268b); "el bon rey" (VSD 457a).

Para Gonzalo de Berceo, Fernando I é o paradigma do bom rei. É um homem escolhido por Deus, sábio, que zela e protege a Igreja sem abusar de seu poder real, ou seja, busca sempre estar em harmonia com a liderança eclesiástica. Tampouco governa sozinho, é apoiado pelo conselho.

 

Alfonso VI e os cavaleiros de Fita

 

Alfonso VI de Castela é citado quando é narrado, de forma incompleta, o último milagre atribuído a Domingo após a sua morte,nas estrofes 732 a 751 da VSD. Nesses versos é relatada a cavalgada dos cavaleiros de Fita [58 bis] que, por iniciativa própria, saquearam Guadalfajara,[57] uma vila muçulmana que estava sobre a proteção do rei. Este, desaprovando o ataque, mandou que o concelho da cidade[58] lhe enviasse os que o desobedeceram para serem punidos. Dentre o grupo encontrava-se Jüanes, o agraciado com o milagre do santo, que foi encarcerado. O que aconteceu com ele não é informado por Gonzalo de Berceo, que interrompe bruscamente a narrativa alegando que o caderno de sua fonte latina que continha tais dados havia se perdido.

Aldo Ruffinato acredita que o autor usa esta escusa como uma espécie de recurso retórico a fim de finalizar o poema, já muito longo.[59] Entretanto, perguntamos: será que o objetivo de Gonzalo de Berceo, ao não completar o relato deste milagre, era, na verdade, não eclipsar a atitude do rei Alfonso VI? Vamos aos fatos incluídos na VSD.

O texto berceano ressalta que tanto o castelo quanto a vila de Guadalajara estavam sob o mandado do soberano: "Fita es un castiello fuert e apoderado,/ infito e agudo, en fondón bien poblado;/ el buen rey don Alfonso la tenié a mandado,/ el que ganó de Toledo si non so trascordado/ Ribera de Henar, dend a poca jornada,/ yaze Guadalfajara, villa muy destemprada;/ estonz de moros era, mas bien assegurada,/ ca del rey don Alfonso era ensennorada" (VSD 733-734). Esses dois últimos versos são dignos de realce, pois neles o autor procura demonstrar que ainda que o povoado fosse de mouros, estava protegido pelo rei, já que este governava o território. O poeta ainda acrescenta que o monarca " Los menazava meter en ferropeas, si resolver quisiessen con cristianos peleas " (VSD 735cd).

Porém o ataque não partiu dos muçulmanos, mas dos cristãos. Gonzalo de Berceo o descreve, sublinhando a tática do assalto surpresa, utilizado pelos cristãos, nas primeiras horas do dia. Os mouros, que se sentiam seguros por serem súditos de um rei que respeitavam e obedeciam, "(...) non se temién de nada " (VSD 737c). A reação do soberano não foi tardia. Segundo a VSD, ele "(...) fo fuertamente irado" (VSD 739a). O motivo de sua ira? "(...) li avién su pueblo destruído e robado " (VSD 739d). Assim, diz a obra, Alfonso VI jurou ao Criador, colocando os dedos em cruz, que faria justiça. Convocou o concelho de Fita e exigiu que os homens que participaram da cavalgada o fossem entregues.

O poeta, lançando mão da linguagem figurada, descreve o temor com que os membros do concelho de Fita reagiram ao mandado do Alfonso VI: "Quando fueron las cartas en concejo leídas, temblavam muchas barbas de cabeças fardidas" (VSD 743ab). O concelho, segundo a VSD, não só tremeu perante as ordens do monarca, mas, sobretudo, " (... ) non osó traspassar del Rey el su mandado" (VSD 744b). Assim, as ordens reais foram cumpridas e os cavaleiros foram presos.

Neste episódio, Alfonso VI é o personagem central, já que nem Domingo figura, porque como o milagre não foi totalmente narrado por Gonzalo de Berceo, o santo só é citado na estrofe 749, quando um dos cavaleiros encarcerados, o já mencionado Jüanes, dirige a ele uma oração. Três elementos desta narrativa são dignos de nota: a grande autoridade do monarca, que está acima dos poderes locais, sejam citadinos ou senhoriais; o fato do soberano repreender aos culpados, independente de sua condição social ou religião, mas em virtude de seu delito; e por fim, que Alfonso VI é apresentado como o senhor de um território que governa com justiça e zela por todos, independente de sua raça ou religião.

 

Conclusão

 

Através da caracterização dos reis nas pequenas narrativas que insere em suas vidas de santos, é possível reconstruir como Gonzalo de Berceo apreendia a realeza. Assim, os reis ibéricos medievais, tal como são retratados nas vidas berceanas, possuem muitas virtudes e funções: são católicos, excelentes guerreiros, partilham da sabedoria divina, são corajosos, fortes, mantém a ordem em seus reinos, praticam a justiça, zelam pela Igreja, possuem autoridade ante seus súditos. Porém, como humanos, os reis berceanos também cometem erros. Sua legitimação, portanto, não pode provir de seus atributos pessoais, mas da instituição, a realeza, que foi formada e é mantida pelo próprio Deus. Neste sentido, se os soberanos são, para Berceo, homens comuns, a realeza, entretanto, é divina.

Os reis são indivíduos que, apesar de passíveis de falhas, receberam de Deus uma tarefa especial: governar. Os reis são somente os escolhidos. Através da sabedoria divina, são orientados para guiar, com justiça, o povo que habita o território do reino, visando o bem estar de todos, independente de sua raça ou religião. Para cumprir essa tarefa, os soberanos possuem direitos e deveres, não poderes mágicos, e contam com o auxilio do conselho composto por nobres e clérigos.

Como católicos, deveriam proteger a Igreja e lutar contra os infiéis, objetivando a expansão da fé cristã. No tocante às questões eclesiásticas, eram co-responsáveis. Isto é, os monarcas poderiam interferir em diversos aspectos da vida clerical, mas cabia às autoridades da Igreja a palavra final. Neste sentido, fica patente a constante preocupação do poeta em harmonizar a autoridade dos reis com a eclesial e defender que, ante às iniciativas e decisões dos monarcas, a Igreja não se mantinha passiva.

Na perspectiva de Gonzalo de Berceo, a Igreja possuía autonomia e preeminência em questões religiosas, mesmo estando sob a proteção do rei. Neste sentido, todas as ações dos monarcas em benefício da Igreja não são representadas como ingerência laica, mas favores reais, sempre executados com a permissão das autoridades eclesiásticas. O rei que fugiu a este padrão, García de Nájera, é duramente criticado na obra.

A representação da realeza berceana não apresenta elementos originais e encontra-se em harmonia com as teorias políticas desenvolvidas por autores hispanos no início da Idade Média, como

Martinho de Braga e Isidoro de Sevilha, e que figuram nos textos jurídicos e canônicos visigodos. A origem divina do poder real; as virtudes exigidas em um monarca, como a sabedoria, a prudência e a justiça; a responsabilidade dos soberanos em reprimir o mal e o dever de agiram e regerem a todos com retidão, são alguns dos princípios estabelecidos nestes textos e que também se fazem presentes na obra berceana.[60] Em um momento de efervescência no campo da reflexão sobre o poder, em especial no tocante à construção dos fundamentos das monarquias ocidentais, como compreender o posicionamento político de Gonzalo de Berceo?

Provavelmente, por ter estudado em uma universidade e como homem culto, Gonzalo de Berceo estava informado sobre estas discussões. Entretanto, era tributário de uma longa tradição histórica e jurídica, que via no Reino Visigodo os antecedentes da realeza castelhana. Criado em um mosteiro, fora profundamente influenciado pela cultura monástica, que preservara as obras e os ideais dos pensadores hispanos da Alta Idade Média. Como clérigo secular, estava comprometido com a Igreja e sofria com os pesados impostos exigidos pelos reis. Próximo do bispo Juan Pérez, não pôde ficar imune aos conflitos que este manteve com Fernando III. Como súdito, reconhecia a autoridade do rei como superior sobre o território. Assim, o poeta buscou conciliar sua fidelidade à realeza e à Igreja.

Ao inserir em suas vidas de santos pequenos episódios em que os reis figuram como peças importantes, Gonzalo de Berceo propagou um modelo de realeza não oficial, pautado na tradição hispano-visigoda, e que é legitimada pelas suas boas relações com a liderança eclesiástica. Ao fazê-lo, o autor acaba por justificar a própria Igreja como a instituição responsável por dirigir espiritualmente a todos os fiéis, inclusive os reis, não negando, contudo, a autoridade destes.

Portanto, conforme pudemos demonstrar, a hagiografia é um tipo específico de texto que não deve ser desprezado pelo historiador que deseja reconstruir as relações de poder. Ainda que sejam obras voltadas, fundamentalmente, para a propaganda de centros de peregrinação e a edificação dos fiéis, por visarem o grande público e serem, na grande maioria dos casos, redigidos por homens cultos e ligados à Igreja, tornam-se textos fronteiriços. Ao mesmo tempo que transmitem os pontos de vista e os ensinamentos elaborados por intelectuais, tais obras incorporam elementos do cotidiano das pessoas para que suas mensagens se tornem mais adequadas e compreensíveis. Assim, as hagiografias são mananciais de dados, não totalmente explorados, sobre as práticas e as representações, individuais e coletivas, presentes nas sociedades ibéricas medievais.


 

 


 

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VARASCHIN, A. Approche de la sociabilité de Gonzalo de Berceo: la marginalité. Les Langues Néo-latines, Paris, n. 213, p. 13-2.

 


Notas

[1] STOPINNO, M. Poder. In: BOBBIO, N, MATTEUCCI, G. Dicionário de política. 6ed. Brasília: UNB, 1994. 2v. V.2, p. 933-943.

[2]GARCÍA DE CORTÁZAR, J. A., SESMA MUNÕZ, J.A. Historia de la Edad Media. Una síntesis interpretativa. Madrid: Alianza, 1997. p. 436-439.

[3] NIETO SORIA, J. M. Del rey oculto al rey exhibido. Medievalismo, Madrid, n. 2, p. 5-27, 1992. p.14-15.

[4] Teófilo F. Ruiz é o autor de um artigo que se tornou um marco no processo de revisão historiográfica sobre a realeza castelhana: Une royauté sans sacre: la monarchie castillane du bas Moyen Age. Annales E.S.C., Paris, n. 39, p. 429-453, 1984.

[5] Ainda que Nieto Soria tenha escrito diversos trabalhos sobre a realeza castelhana, seu livro fundamental é NIETO SORIA, J. M. Fundamentos ideológicos del poder real en Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: Eudema, 1988.

[6] A concepção de Rucquoi sobre a questão dos fundamentos da realeza castelhana encontra-se sistematizada em RUCQUOI, A. De los reyes que no son taumaturgos: los fundamentos de la realeza en Espana. Relaciones, México, v. XIII, n. 51, p. 55-100, 1992.

[7] CHARTIER, R. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. p. 23.

[8] CHARTIER, R. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, L. (Org.). A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 231.

[9] DIAZ Y DIAZ, M. C. Libros y librerías en la Rioja Altomedieval. 2 ed. Logrono: Instituto de Estudios Riojanos, 1991. p. 169-170, 322-332.

[10] Em suas obras, Gonzalo de Berceo emprega a cuaderna via, um tipo específico de estrofe que caracterizou, junto a outras técnicas, o movimento literário conhecido como Mester de Clerecia; revela conhecimentos de música, dogmática, prosódia, retórica e jurídicos; faz menções específicas a cidade e universidade de Palência: e inclui referências irônicas à D. Tello, a quem se atribui a fundação do studium palentino.

[11] DUTTON, B. Gonzalo de Berceo: unos datos biográficos In: PIERCE, F, JONES, G. A. (Ed.). CONGRESO DE HISPANISTAS, 1, s/l, s/d. Actas... Oxford: Dolphin BooK, 1964. p. 249-254.

[12] ÚRIA MAQUA, I. Introducción biográfica y crítica. In: GONZALO DE BERCEO. Poema de Santa Oria. Edição critica de Isabel Úria Maqua. Madrid: Castalia, 1981. p. 12.

[13] MENENDEZ PELÁEZ, J. El IV Concílio de Letrán, la Universidad de Palencia y el Mester de clerecia. Studium Ovetense, Oviedo, n. 12, p. 27-39, 1984. p. 36.

[14] AGUADÉ NIETO, S. Las universidades y la formation intelectual del clero castellano en la Edad Media. In:_. (Coord.). Universidad, cultura y sociedad en la Edad Media. Alcalá de Henares, Universidad de Alcalá de Henares, 1994. p.159-206.

[15] Estes documentos foram publicados por HERGUETA, N. (Org.) Documentos referentes a Gonzalo de Berceo. Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos, Madrid, n. X, p. 178-179, 1904 e SAN JOSÉ, J.P. (Org.). Documentos del convento de San Millán de la Cogolla en los que figura Don Gonzalo de Berceo. Berceo, Logrono, n. 50, p. 79 - 93, 1959.

[16] Esta hipótese, defendida por Brian Dutton, baseia-se em uma estrofe do manuscrito de Paris do Libro de Alexandre, na qual a autoria é assumida por Gonzalo de Berceo, que se apresenta como notário do abade. DUTTON, B. La profesión de Gonzalo de Berceo y el manuscrito del Libro de Alexandre. Berceo, Logrono, n. 80, p. 285-294, 1968.

[17] Esta hipótese, defendida por Cátedra, baseia-se no fato de que o concilio de Valladolid ordenava que em todas as igrejas conventuais fossem estabelecidos letrados para pregar e ouvir confissões. Como em um documento notarial, datado de 1264, Gonzalo de Berceo é intitulado como Maestro de Confission, é possível que tenha exercido esta função junto ao mosteiro. CÁTEDRA, P. M. Nota introductória Del Sacrifício de la Misa In: GONZALO DE BERCEO. Obra Completa. Coordenada por Isabel Úria Maqua. Madrid: Espasa-Calpe, 1992. p. 935- 943.

[18] Em uma de suas obras Gonzalo de Berceo se auto intitula Maestro Gonçalvo de Verceo. Segundo Martin Alonso, Maestro, no castelhano dos séculos XII ao XIV, era o termo que designava aquele que ensinava uma ciência, arte ou ofício, ou que possui um título para fazê-lo. Logo, acreditamos que é possível que o poeta também tivesse exercido o magistério. MARTIN ALONSO. Diccionario Medieval Espanol. Desde las Glosas Emilianenses y Silenses (s. X) hasta el siglo XV. Salamanca: Universidad Pontifícia de Salamanca, 1986. 2 t., T. 2, p. 1336.

[19] Como todos os poemas compostos por Gonzalo de Berceo possuem relação com o Mosteiro de San Millán de la Cogolla, Brian Dutton defendeu a hipótese de que estas obras foram escritas sob encomenda e visavam angariar recursos para o cenóbio. Los moviles generales de la obra de Gonzalo de Berceo. In: GONZALO DE BERCEO. Obras Completas. Estudo e edição critica por Brian Dutton. 2ed. London: Tamesis Books, 1984. V.1: Vida de San Millán de la Cogolla, p. 177-183.

A VSM só foi transmitida, em sua integridade, por cópias tardias, realizadas no século XVIII, porém, segundo os críticos, muito fiéis ao texto original. O manuscrito datado do século XXIV - o F - só contém fragmentos do poema e se encontra na Academia Espanola de La Lengua. Das cópias realizadas no século XVHI, duas tomaram como base um manuscrito de meados do século XIII, hoje perdido, denominado Q. Tratam-se das cópias O e M, que, na realidade, são partes do mesmo texto copiado por Diego Mecolaeta: O, que contém as estrofes 1 a 205, encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid e M, com as estrofes 206a489, está no Arquivo dos Beneditinos de Valladolid. A cópia conhecida por I, realizada sob a direção do Padre Domingo Ibarreta, encontra-se no Mosteiro de Santo Domingo de Silos. No Arquivo de Valladolid, acha-se a cópia denominada L. Não se sabe ao certo que manuscrito anterior lhe foi tomado como base. A obra VSD foi conservada por três manuscritos medievais. O primeiro, o S, que se encontra no Mosteiro de Silos, é datado de 1240. Acredita-se que é uma cópia feita em San Millán de la Cogolla por um monge silense. O segundo é o H, da Real Academia de la Historia, datado de 1360. Trata-se de uma cópia de S, provavelmente realizada para o mosteiro de San Martin de Madrid, então filiadao ao Mosteiro de Santo Domingo de Silos. O terceiro, o E, que pertence à Real Academia de la Historia, é uma parte do manuscrito F, que também contém fragmentos da VSM, acima mencionado.Em nosso trabalho, empregamos a edição crítica das obras completas de Gonzalo de Berceo organizada por Isabel Úria e publicada em 1992. A reconstrução do texto da VSM, presente nesta edição, foi elaborada por Brian Dutton, que, tomando o manuscrito I como base, o corrigiu, utilizando o F e o M.. Quanto à VSD, contamos com o texto preparado por Aldo Ruffinato, baseado em S e corrigido por E.

[21] Há, na obra Milagros de Nuestra Senora, uma referência ao rei Fernando III (705bc).

[22] Sobre as discussões quanto à datação das obras VSM e VSD ver FRAZÃO DA SILVA, A. C. L. Quiero fer uma prosa em román paladino...: as vidas de santos de Gonzalo de Berceo. Rio de Janeiro, 1996, Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de janeiro. Mimeog., p. 60-63.

[23] O texto desta carta de Hermandad encontra-se em Cartulário de San Millán de la Cogolla (1076 - 1200). Edição crítica de Ledesma Rubio. Zaragoza: Anubar, 1989. Doc. n. 461. Esta carta foi renovada em 1236, o que desvela o dinamismo e a continuidade dos vínculos entre estes dois mosteiros.

[24] "Il écrivait pour ses amis, pour ses paroissiens, pour les moines, pour les Riojanos, pour les castillans qui venaient prier dans l'un ou l'autre des couvents des deux saints régionaux, san Millán et Santo Domingo de Silos...". CIROT, G. L'expression dans Gonzalo de Berceo. Revista de Filologia Espanola, Madrid, n. 9, p. 154-170, 1922. p. 170.

[25] MARTINI, M. L. C. Berceo entre o oral e a letra. Linguagem, Niterói, p. 59-65, 1978. p. 64; BANOS VALLEJO, F. La hagiografia como género literario en la edad media. Oviedo: Universidade de Oviedo, 1989. p. 105.

[26] Sobre a escrita e a leitura na Idade Média ver CAVALLO, G. et CHARTER, R (Org.). História da Leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998.

[27] ÚRIA MAQUA, I. Gonzalo de Berceo y el Mester de Clerecia en la nueva perspectiva de la critica. Berceo, Logrono, n. 110-11, p. 7- 20, 1986. p. 7-8.

[28] Os poemas produzidos por Gonzalo de Berceo tampouco foram esquecidos nos anos posteriores à sua morte. Sobre esta questão ver KLING, H. A propos de Berceo. Revue Hispanique, Paris, n. 35, p. 77­90, 1915.

[29 bis] LAMA, I.R.R. (Ed.). Colección Diplomática Medieval de La Rioja. Logrono: Instituto de Estudios Riojanos, 1979. 4 v. V. 4, doc. n. 86.

[29] MARTIN ALONSO. op. cit., T. 2. p. 969.

[30] Idem, ibidem.

[31] VARASCHIN, A. Approche de la sociabilité de Gonzalo de Berceo: la marginalité. Les Langues Néo-latines, Paris, n. 213, p. 13-22, 1979. p.14.

[32] O autor apresenta localidades de Castela, como Fitero (471a), Avia (468a), Amaya (469a), Astudiello, atual Astudillo, (472a), Fenojosa, atual Hinojosa, (471b); como já assinalamos, faz referências a D. Tello Téllez de Meneses, bispo de Palência entre 1207 e 1246, com familiaridade e ironia (Mil 325); afirma ter visto a pequena cozinha do Mosteiro de Santa Maria de Canas (VSD 109); descreve os rios localizados próximos ao Mosteiro de Santo Domingo de Silos (VSD 230) e o e o túmulo de Santa Oria (Oria 184).

[33] LAMA. op. cit, doc. n. 6, 10, 31, 32, 39, 57, 71, 219.

[34] Sobre a diocese de Calahorra no século XIII ver DIAZ BODEGAS, P. La Diócesis de Calahorra y la Calzada en el siglo XIII (la sede, sus obispos e instituciones). Logrono: Obispado de Calahorra y La Calzada-Logrono, 1995; SAINZ RIPA, E.Sedes episcopales de La Rioja. Siglos IV-XIII. Logrono: Diócesis de Calahorra y La Calzada-Logrono, 1994; MANSILLA REOYO, D. Iglesia Castellano Leonesa y curia romana en los tiempos del rey San Fernando. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1945; LINEHAN, P. La Iglesia Espanola y el papado en el siglo XIII. Salamanca: Universidad Pontificia de Salamanca, 1975; GARCIA VILLOSLADA, R (Org.) Historia de la Iglesia Espanola. Madrid: Biblioteca de Autortes Cristianos, 1982. V. 2, T. 2: Edad Media. p. 5-174, e SANCHÉZ HERRERO, J. Iglesia y religiosidad. In: SALVADOR DE MOXÓ, O V., LADERO QUESADA, M. A (Coord.). Historia General de Espana y América. Madrid: Rialp, 1984. T. 4: La España de los cinco reinos (1985-1369).p.179-257.

[35] Segundo Martinez Diez, estas concessões de subsídios eram dadas pelo papa, e eram pagas pelas dioceses e pelo clero de Castela e Leão. Além desses tributos pagos diretamente ao rei, o próprio papado exigia 5% das rendas eclesiásticas para financiamento da cruzada, dinheiro que também permanecia em Castela. MARTINEZ DIEZ, G.. Fernando III (1217-1252). Palencia: La Olmeda, 1993. p. 267.

[36] Os termos Pamplona e Navarra foram utilizados, durante a Idade Média, para identificar o mesmo reino. Os seus reis, até meados do século XII, apresentam-se como rex in Pampilona. A troca de títulos ocorreu por volta de 1147, quando passa a ser empregado o título regnante Garsia rege in Pampilona et en Navarra. Em 1150, adota-se a expressão rex Navarre. Assim, ainda que Gonzalo de Berceo narre acontecimentos dos séculos X e XI, o faz no século XIII. Logo, vamos empregar tanto o termo Pamplona quanto o Navarra neste texto, seguindo a própria denominação presente na documentação real medieval.

[37] Obedecemos, neste texto, as grafias dos nomes próprios utilizadas por Gonzalo de Berceo.

[38] Sobre a historicidade dos fatos narrados por Berceo e a composição literária da VSM ver DUTTON, B. Las fuentes de la Historia de los votos. In: GONZALO DE BERCEO. Obras Completas. Estudo e edição critica por Brian Dutton... op. cit., p. 231-249.

[39] Idem, p. 231.

[40] Idem, p. 238.

[41] Faz-se importante ressaltar, porém, que nestas obras, outros personagens também são alvo do "conselho divino", tais como os santos protagonistas. Logo, a sabedoria não se distingue por ser um atributo exclusivo dos monarcas, mas como uma virtude, concedida pela divindade, para todos os que lhe são fiéis.

[42] GARCIA TURZA, F. J. Morfología de la ciudad de Nájera en la Edad Media. In: IGLESIA DUARTE, J. I. (Coord.). SEMANA DE ESTUDIOS MEDIEVALES, 3, Nájera, 1992. Actas... Logrono: Instituto de Estudios Riojanos, 1993. p. 74.

[43] Sobre o uso dos termos Pamplona e Navarra ver nota 35.

[44] Por um acordo de 1177, realizado entre os reis de Castela, Alfonso VIII, e de Navarra, Sancho, o sábio, mediado por Henrique II de Inglaterra, algumas regiões de La Rioja, antes pertencentes à Navarra e tomadas por castelhanos em períodos sucessivos, deveriam ser devolvidas. Contudo, o monarca castelhano não respeitou o acordo. Sobre a questão ver DÍAZ BODEGAS, P. op. cit., p. 57-76.

[45] DUTTON, B. Las fuentes de la Historia de los votos. In: GONZALO DE BERCEO. Obras Completas. Estudo e edição critica por Brian Dutton... op. cit., p. 241.

[46] PÉREZ DE CIRIZA, L. J. F., SIMONENA, C. J. Historia de Navarra. Pamplona: Governo de Navarra, 1993. p. 149.

[47] DUTTON, B. Gonzalo de Berceo y los Cantares de Gesta. Berceo, Logrono, n. 77, p. 407-416, 1965.

[48] Nesta ocasião, Nájera passou ao controle de Castela. Sobre o chamado Reino de Nájera ver PRADILLA MAYORAL, M. C. F. El Reino de Nájera: población, economia, sociedad y poder. Logrono: Instituto de Estudios Riojanos, 1991.

[49] VÁLDEON, J. et al. Feudalismo y consolidación de los pueblos hispânicos. Siglos XI- XV. Barcelona: Labor, 1980. p.14-15.

[50]GONZALO DE BERCEO. Vida de Santo Domingo de Silos. Edición, introducción y notas de Teresa Labarta de Chaves. Madrid: Castalia, 1987. p. 85, nota 127a.

[51]COLECCIÓN. op. cit, v. I. doc. n. 3, 4, 6,7, 8, 10, 12, 13 e 14.

[52] RUIZ DOMINGUEZ, J. A. Navarra y los navarros en el mundo religioso de Gonzalo de Berceo. Principe de Viana, Pamplona, v. 49, p. 625-633, 1988.

[53] LINAGE CONDE, A. Los origenes del monacato benedictino en la Peninsula Ibérica. León: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1972. p. 617.

[54] ORLANDIS, J. La Iglesia en La Espana Visigótica y Medieval. Pamplona: Universidad de Navarra, 1976. p. 307-348.

[55] Sobre o Concílio de Coyanza ver GARCIA GALLO, A. El concílio de Coyanza. Anuario de Historia del Derecho Espanol, Madrid, n. 20, p. 275-333, 372-416, 1950.

[56] Domingo foi abade de Silos entre 1041 a 1073, período em que promoveu a restauração material e disciplinar da abadia.

[57] Atual Guadalajara.

[58] Faz-se interessante ressaltar que ao mesmo tempo que o autor informa que Fita era um castelo, o apresenta como uma cidade, com seu mercado e concelho. Um concelho, na Península Ibérica dos séculos XII e XIII, era um órgão local com poderes administrativos, jurídicos e de defesa. Seu direito está pautado em um Fuero, concedido ou, muitas vezes, elaborado pelos próprios membros do concelho, mas confirmado por um autoridade, seja um abade, bispo, senhor local ou o próprio rei. A preocupação fundamental do concelho e dos seus representantes eleitos, dentre os tais, os alcaides, era a manutenção da paz e a segurança. Assim, apesar de sua relativa autonomia, estes poderes locais estavam subordinados ao rei.

[58 bis]  O castelo de Fita, mencionado por Berceo, trata-se da fortaleza de Hita, uma das mais importantes de Castela durante a Idade Média. Estava localizada próxima ao rio Henares, ao norte da atual Guadalajara.

[59] GONZALO DE BERCEO. Obra Completa. Coordenada por Isabel Uría Maqua... op. cit, p. 446, nota 751.

[60] Sobre as teorias políticas desenvolvidas nos reinos germânicos hispanos na Alta Idade Média, ver BARBERO DE AGUILERA, A. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid. Siglo XXI, 1992; ORLANDIS, J. Historia del reino visigodo espanol. Madrid: Rialp, 1988. Sobre o pensamento político de Martinho de Braga, remeto aos trabalhos produzidos pela Prof." Dr." Leila Rodrigues da Silva. Dentre eles, o artigo Prudência, Justiça e Humildade: elementos marcantes no modelo de monarca presente nas obras dedicadas ao rei suevo. Revista de História, São Paulo, n. 137, p. 9-24, 1997.

 

(Nota del editor web: para facilitar la búsqueda de la bibliografía señalada por la Prof. Lopes Frazão da Silva,hemos reseñado las direcciones donde se ofrecen algunos de los estudios citados.)

 

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HAGIOGRAFIA E PODER NAS SOCIEDADES IBÉRICAS MEDIEVAIS

 

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
História - universidade Federal do Rio de Janeiro
 

Humanas, Curitiba, n.10, p.135, 2001. Editora UFPR