Calle Mayor de Santo Domingo de la Calzada. Recorre la villa de este a oeste,pasando por la puerta de la Catedral. Camino que siguen los romeros desde tiempos inmemoriales, antes de cruzar el río Oja, para adentrarse en los Montes de Oca en su peregrinaje a Compostela.
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Biblioteca Gonzalo de Berceo

 

Santiago de Compostela foi, ao lado de Jerusalém e Roma, um dos principais centros de peregrinação cristã medieval.[1] Após a pretensa descoberta do túmulo do apóstolo Tiago, no início do século Ix, este espaço, pouco a pouco, organizou-se e consolidou-se como local sagrado, que já no século X atraía fiéis do outro lado dos Pirineus, como o bispo de Puy-en-Velay, Gotescalc.
               Na segunda metade do século XI, foram se fixando  rotas de peregrinação em direção a esta cidade, dentre estas, a mais conhecida e, provavelmente, a mais freqüentada,  era o chamado Caminho Francês. Ao longo destas vias de romarias foram sendo construídas pontes, cami­nhos, calçadas, albergues, hospitais, tanto por iniciativa real quanto eclesiástica e laica, com o objetivo de dar segurança e comodidade aos peregrinos.
               Todos os anos, entre 200.000 a 500.000 pessoas,
[2]   das diversas regiões do ocidente e de variadas origens sociais, dirigiam-se para Compostela. Além dos milhares de anônimos, também peregrinaram até esta cidade autoridades civis e religiosas, bem como indivíduos que foram considerados santos,  tais como Matilde da Inglaterra, Luís VII da França, a condessa Sofia da Holanda, o duque Guilherme X da Aquitânia, Cid, Francisco de Assis, Domingo de Gusmão, dentre muitos outros.
              Este amplo movimento, conhecido como peregrinações a Santiago de Compostela, foi, portanto, um fenômeno de massas, que estimulou os intercâmbios culturais, bem como o crescimento econômico do Norte da Península Ibérica. Desta forma, pelas rotas de peregrinação não circulavam só pessoas e idéias, mas também riquezas.
               O objetivo deste trabalho é apresentar e discutir como gonzalo de Berceo, poeta e clérigo secular castelhano, que viveu na primeira metade do século XIII, retratou Santiago em suas obras. Esta questão ganha especial relevância face ao fato que este autor produziu seus poemas para estimular as peregrinações a um centro rival a Compostela: o mosteiro de San Millán de la Cogolla.

 

  1. Gonzalo de Berceo,  sua produção literária e o Mosteiro de San Millán de la Cogolla

 

Gonzalo de Berceo foi o primeiro poeta a escrever em castelhano do qual possuímos notícias, ainda que escassas, presentes em suas obras ou em documentos notariais que foram preservados.[3] Nasceu por volta de 1196, em Berceo, povoado de La Rioja, região pertencente ao Reino de Castela e localizada no Centro-Norte da Península Ibérica. Foi criado no mosteiro de San Millán de la Cogolla, mas optou pela vida religiosa secular, tendo atuado como clérigo em sua cidade natal. Era um homem culto, que freqüentou uma escola urbana, provavelmente a Universidade de Palência.[4]

             Compôs vários poemas, todos de temática religiosa:   Vida de San Millán de la Cogolla, Vida de Santo Domingo de Silos, Vida de Santa Oria (também conhecida como Poema de Santa Oria), Martírio de San Lorenzo, hagiografias; Milagros de Nuestra Señora, Loores de Nuestra Señora, El Duelo de la Virgen, obras marianas; del Sacrificio de la Misa, Los signos del Juício Final , textos doutrinais e três hinos, dedicados a Jesus, ao Espírito Santo e a Maria.

 Tais poemas apresentaram alguns traços comuns:  um tipo específico de estrofe, a cuaderna via;[5]  o uso de fontes escritas, em sua grande maioria em latim, como ponto de partida para a elaboração de seus textos, e a utilização de técnicas literárias recomendadas pelos retóricos medievais.

Mesmo tomando como base textos latinos, a obra literária de Berceo é original, já que seleciona, adapta e amplifica os dados presentes em suas fontes, construindo um discurso próprio. Tal como  afirma Carmelo Gariano, em uma obra já clássica:[6]

... lo que Berceo ha hecho con sus fuentes es un caso de adaptación poética; pero eso no lo dice todo, pues con frecuencia ha convertido en hecho poético lo que en las fuentes es árida prosa ... aún en la simple traducción se altera todo un sistema de relaciones debido al esfuerzo por dar vida a los elementos de la fuente original... Con más razón, se verifican cambios más hondos en una adaptación libre de una fuente redactada en prosa y en una lengua distinta.

Os poemas berceanos, com exceção das obras doutrinais, apresentam temáticas em estreita ligação com o cenóbio emilianese: Millán, segundo a tradição, fora o fundador do mosteiro, no século VI; Domingo, o reformador do Mosteiro de Silos, fora monge e prior do cenóbio de la Cogolla, também no século XI;[7] Oria  viveu ali, no século XI, como emparedada;  Lorenzo, martirizado durante a perseguição aos cristãos sob Décio, em meados do século III,  foi homenageado por Millán, que deu o seu nome a uma montanha onde viveu como eremita;[8] quanto às obras marianas, estariam relacionadas à Igreja de San Millán de Yuso, dedicada à Virgem.[9]

O mosteiro de San Millán de la Cogolla está localizado ao sul de Nájera, em uma das laterais da Serra da Demanda, distante cerca de mil e quinhentos metros do povoado de Berceo. Atribui-se a  Millán a fundação desta comunidade. É possível que a partir de um núcleo inicial de seguidores do santo tenha se estabelecido uma pequena comunidade que após o século XI, quando se intensificaram as lutas de reconquista da região, foi reformada e enriquecida com doações.

Este mosteiro ocupou um importante papel como centro estratégico, liderando e organizando a vida religiosa, econômica e intelectual das áreas ao seu redor. Contudo, no fim do século XII, este quadro começou a se transformar. A partir deste período,  foram constantes os litígios contra o episcopado calagurritano pela jurisdição sobre templos e terras. Com a inserção de novas ordens religiosas na região, em especial as mendicantes, as doações decresceram. face à organização das escolas urbanas, perdeu sua hegemonia como centro intelectual.  Com a consolidação das peregrinações a Santiago de Compostela,  a despeito de abrigar o túmulo do patrono de Castela, já não atraía o mesmo número de romeiros. com a urbanização da região em ritmo crescente, foi substituído no papel de organizador da produção. Assim, além de dificuldades econômicas, na primeira metade do século XIII o mosteiro emilianense vivia  uma crise.

Como Gonzalo de Berceo era um homem culto, fora criado neste mosteiro e era clérigo de uma paróquia que estava bem próxima do emilianense, acreditamos que foi contratado por esta comunidade para compor poemas que estimulassem as peregrinações e doações ao mosteiro, bem como recordassem os anos de glória desta instituição. Nosso clérigo-poeta, portanto, teria atuado como uma espécie de propagador desta casa monástica.

Estes dados, contudo, podem nos levar a questionar porque Gonzalo de Berceo menciona Santiago em suas obras, um dos santos mais conhecidos e venerados na Idade Média ocidental, se seu objetivo era engrandecer o mosteiro emilianense. A seguir, vamos analisar os textos berceanos em que há referências diretas a este apóstolo, buscando analisar e discutir a questão.

 

2. Santiago nas obras berceanas

 

Santiago figura diretamente em duas obras berceanas:  Milagros de Nuestra Señora (Mil) e a Vida de San Millán de la Cogolla (VSM).

Mil é a mais extensa e conhecida das obras de Berceo. É formada por uma coleção de vinte e cinco relatos de milagres atribuídos à Virgem Maria, precedidos por uma introdução alegórica, na qual Maria é comparada a um aprazível jardim. Foi redigida entre 1246 a 1252. A fonte direta da introdução ainda não foi identificada. Quanto aos milagres, contudo, com exceção do La iglesia robada, todos os outros provém de uma fonte latina que se encontra no manuscrito Thott 128 da Biblioteca Real de Compenhage. Este documento contém os mesmos milagres e na mesma ordem em que foram narrados por Berceo.         

Dentre os milagre relatados nesta obra, vamos analisar o oitavo que, como o próprio título indica, El romero de Santiago, tem como alvo da ação da Virgem, após a intercessão do santo apóstolo, um peregrino que se dirigia a Compostela.             

A VSM foi uma das primeiras obras redigidas por Gonzalo de Berceo, por volta de 1230.  Narra a biografia e os milagres de Millán, que se dedicou à vida eremita e à  cristianização da população dos vales dos rios Najerilla e Cardeñas, bem como a das montanhas Cantábricas, no período visigótico. Reuniu seguidores, entre homens e mulheres, sendo considerado, pela tradição, como já assinalamos, como o fundador do Mosteiro de San Millán de la Cogolla.[10]

Millán  morreu em 574, com 100 anos, sendo enterrado na cova em que vivera como eremita, que, prontamente, transformou-se em local de peregrinação.  É considerado o patrono de Castela, já que lhe é atribuído um milagre ocorrido no século X, quando, junto a Santiago, teria sido visto lutando ao lado dos reis cristãos contra os mouros na batalha de Simancas. São justamente nas estrofes que apresentam tais acontecimentos que encontramos os dados referentes ao apóstolo compostelano. A seguir, vamos analisar as passagens selecionadas.

 

 2.1. El romero de Santiago

O oitavo milagre narrado em Mil é uma versão de uma estória que figura em vários textos medievais, como as Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o sábio; o Liber Sancti Jacobi, também conhecido como Codex Calixtinus; o Speculum historiali, de Vincent de Beauvis; e os Miracles de la Sainte Vierge, de Gautier de Coincy. Todos estas obras, apesar de apresentarem este mesmo evento, o fazem de maneira particular, apreendendo-o de forma criativa, ou seja, adaptando-o, em função dos interesses do autor, objetivo da obra e em sintonia com o seu contexto de produção.

Na versão berceana, Hugo de Cluny, uma das figuras mais populares do Ocidente no século XI, é apontado como transmissor deste relato (Mil 182c, 218d), provavelmente para ressaltar a veracidade do mesmo.

Como já assinalamos, este milagre tem como protagonista um romeiro que se dirigia a Santiago, Guiralt.[11] Segundo a Mil,  era um indivíduo "não muito sensato, que fazia, às vezes, loucuras e pecados como homem solteiro que não está sujeito à regras"  (Mil 183bcd),[12]  que decidiu, um dia, fazer a peregrinação. Desta forma, organizou seus negócios, reuniu recursos e suprimentos, encontrou  companheiros,  marcou o dia da viagem...
               Porém, a despeito de todas as providências tomadas, segundo a narrativa berceana, Guiralt não fez o preparo espiritual necessário a uma viagem religiosa: ao invés de passar a noite anterior ao início da peregrinação em penitência, optou por "dormir com sua amante" (Mil 185).
[13] Este fato levou a que, segundo Mil, o romeiro iniciasse o seu trajeto cheio de culpa, tal como é possível inferir pela expressão utilizada pelo poeta: "iniciou seu caminho com sua urtiga" (Mil 185 d).[14] Ou seja, utilizando este vegetal como alegoria, Gonzalo de Berceo aponta que assim como a urtiga incomoda a quem a toca, o  pecado fica a remoer o coração dos homens.[15]

Desta forma, enquanto realizava a terceira jornada da peregrinação, o diabo lhe apareceu, como "verdadeiro anjo" (mil  186-188).[16] Apresentando-se como "Tiago, filho de Zebedeu",[17] fez-lhe uma série de ameaças, já que este não se preparara dignamente para a peregrinação. Porém, afirmou que desejava salvá-lo (Mil 189-190). Guiralt logo perguntou  como deveria proceder para redimir-se, ao que o falso Tiago ordenou: "que  cortes os membros com os quais praticas a fornicação" (Mil 191-192).[18] Prontamente o romeiro o obedeceu. Porém, em conseqüência dos ferimentos, acabou morrendo, sem comungar, isto é, sem receber os últimos sacramentos. (Mil 193).
              Após narrar estes fatos, a Mil inicia o relato da disputa pela alma do peregrino, que Gonzalo de Berceo reconstrói em forma de diálogo. de um lado, encontravam-se os demônios, que se consideraram os reais donos da referida alma e desejavam  levá-la; de outro,  o verdadeiro Santiago, que afirmava ter jurisdição sobre a mesma alma, já que o indivíduo em questão era seu peregrino.  Diversos argumentos são levantados por ambas as partes para defender sua causa, até que o apóstolo intercede à virgem, solicitando que esta venha a ouvir os pleitos e julgar a questão (Mil 197-205).

Provavelmente  inspirando-se nos procedimentos seguidos nos tribunais castelhanos do período,[19] Gonzalo de Berceo descreve como ambos passam a apresentar suas queixas ante a gloriosa, que, por fim, pronuncia a sua sentença, pautando-se no fato de que o comportamento de Guiralt só poderia ser compreendido pelo fato deste acreditar estar obedecendo ao verdadeiro Santiago:

Eu isto mando e dou por sentença:
              a alma que disputaram
              deve voltar ao corpo, fazer sua penitência;

              e logo deverá ser julgado definitivamente, tal como merecer
                                                                              (Mil 208).
[20] 

Guiralt, portanto, ganhou uma nova chance, graças à intervenção de Santiago, que apelou à Santa Maria. Recobrou a vida e teve seus ferimentos cicatrizados.[21]  Depois destes sucessos, retornou a sua peregrinação, rendendo graças a Deus,  à Gloriosa e ao santo apóstolo, contando a todos o que lhe sucedera.  Ao voltar a sua terra natal, optou pela vida religiosa, ingressando no mosteiro de Gruniengo, do qual Hugo era abade.
              Este milagre possui claros objetivos moralizadores: sublinha a importância da continência, principalmente no tocante ao sexo; da penitência; da disciplina e da obediência, louvando a vida monástica, que, por sua vez, implicava na incorporação destas virtudes. Assim, de homem pecador e sem compromissos, após ressurgir da morte, Guiralt decide  tornar-se monge, passando a viver de forma regrada e santa. Como Gonzalo de Berceo escreve para estimular as peregrinações e as ofertas ao cenóbio emilianense, não é de se estranhar que apresente a vida monástica como um contraponto a uma vida de "loucuras".

Mas este relato também apresenta claros interesses propagandistas. Em primeiro lugar, por tratar-se de uma coletânea de milagres marianos, visa, obviamente, estimular o culto à Virgem.   Nele, sem dúvidas, Maria é o elemento central como aquela que ouve a todos e, com sabedoria, julga e emite as sentenças. Contudo, não há que desprezar a participação de Santiago. Ele não ignorou o acontecido e veio em socorro de Guiralt; estabeleceu uma disputa com os demônios; invocou pela intervenção de Maria e agiu como um advogado de defesa. Ou seja, seu papel foi ativo em toda ação.

Logo, não acreditamos que Gonzalo de Berceo, por ter como principal objetivo  engrandecer à Virgem e estimular as visitas à Igreja de San Millán de Yuso, tenha procurado, com este milagre, descaracterizar Santiago como milagreiro. Ao contrário. Mesmo mantendo-se fiel ao relato tradicional, já amplamente divulgado, o autor o atualiza para realçar as ações deste santo em todo o processo. Coube ao apóstolo compostelano a iniciativa de socorrer a alma de Guiralt, que, por sua vez, não se esqueceu de ser-lhe grato. Neste sentido, não só continuou a sua romaria, como a fez sem esquecer de agradecer e exaltar ao santo apóstolo por todo o caminho.


 

  2.2. A Batalha de Simancas

 

A Batalha de Simancas, com os acontecimentos que a antecederam, é apresentada, na VSM, entre as estrofes 362 a 457, como o quinto milagre realizado por Millán após a sua morte.[22]  Segundo informa esta obra, os muçulmanos oprimiam aos cristãos. Deus, indignado pela omissão dos seus, enviou alguns sinais maravilhosos para os alertar de seus erros. Os cristãos, assim, arrependeram-se e se negaram a pagar o tributo imposto pelos muçulmanos que, segundo Berceo, era a entrega de 60 donzelas anualmente, e começaram a preparar-se para a guerra.              
              Como represália, os muçulmanos, liderados por Abderraman, invadiram as terras leonesas.  o rei Remiro de Leão,
[23]  então, convoca aliados - Ferrán Gonçálvez, "duc" de Castela, e García, "sennor de pomploneses" - e prepara-se para a batalha. Antes do embate militar, porém, o rei Remiro instituiu os votos, ou seja, o pagamento periódico de ofertas a Santiago. Ferrán Gonçálvez, seguindo o exemplo do leonês, estabeleceu, para Castela, o pagamento de votos a San Millán. Assim, no momento do combate, os santos surgiram para auxiliar os cristãos, que saíram vencedores.            
              Para compor a sua narrativa sobre esta batalha, Gonzalo de Berceo utilizou diversas fontes.
Entretanto, como sublinha Brian Dutton, "ningún texto conocido contiene todos los detalles tal como se presentan en la obra de Berceo".[24] O poeta, mesmo usando dados presentes em outros escritos, refundiu-os, criando um produto novo, original em muitos aspectos.
              No momento em que Gonzalo de Berceo redigiu a VSM, cerca de 1230, como já assinalamos, o patronato de Santiago para toda a Espanha já estava estabelecido. O próprio autor o aponta: "... o que jaz na Galícia, o primeiro da Espanha"  (VSM 422d).
[25]  Contudo, este primado não anulava os patronatos locais que, no tocante à castela, segundo aponta Ruiz domínguez, ainda não estava totalmente fechado.[26] Assim, acreditamos que o poeta possuía duas preocupações fundamentais ao compor tais estrofes: demonstrar que de fato e de direito San Millán era o patrono do reino castelhano e, portanto, digno de receber os votos,  e  colocar este santo no mesmo patamar de glória que Santiago. Desta maneira, narra a instituição dos votos como ocorridas nas mesmas circunstâncias, bem como a aparição milagrosa de ambos os santos, com igual esplendor, em meio a batalha de Simancas.
              No seu relato, o autor realça a associação Leão-Santiago e Castela-Millán. Deste modo, após narrar a instituição dos votos em Leão, apresenta o ocorrido entre os castelhanos. Para tal, constrói um discurso fictício que atribui a Ferrán Gonçálvez, no qual são apresentados os argumentos que deveriam convencer aos nobres e altos dignatários eclesiásticos da eleição de Millán como patrono:

Confessor é precioso, de Deus muito amado,
              Em vida e em morte, sempre foi cheio de virtudes;
              O que lhe foi pedido, nunca foi negado,
              Nesta situação em que estamos, será bom advogado.

 

À frente está do reino, corpo honrado
              Patrono dos espanhóis, salvo o apóstolo;
              Vamos honrá-lo, varões, dar-lhe esta dádiva
                                                           (VSM 430 a 431abc).
[27]

Sem questionar o patronato de Santiago, o autor sublinha as qualidades de Millán como o intercessor que poderia livrar os castelhanos do mal.  O objetivo de Gonzalo de Berceo é claro: garantir que os castelhanos entreguem ao mosteiro de la Cogolla  as ofertas que, através do voto, teriam sido estabelecidas no século X. Assim, nas estrofes 462 a 479 passa a enumerar as cidades e o que estas deveriam entregar, anualmente, ao santo, destacando que os votos instituídos por Ferrán Gonçálvez haviam sido confirmados por Roma (VSM 464cd). O poeta ainda acrescenta que se os votos fossem lealmente enviados, a situação estaria melhor para todos: "não seríamos, como somos, cheios de tristeza" (VSM 479d).[28]

Acreditamos que esta associação entre  patronos e  reinos também está ligada às questões políticas contemporâneas à produção do poema. Em  1230, ano provável de redação da VSM, Castela uniu-se a Leão. Apesar de governados pelo mesmo monarca, Fernando III, cada reino manteve suas instituições políticas separadas. Desta forma, mesmo que o poeta tenha composto tais versos após esta união, apresentá-los como dois reinos distintos, com diferentes patronos, pode sinalizar uma certa resistência em considerar esta união um fato. Estes dois reinos, por diversos motivos, possuíam particularidades que só paulatinamente foram sendo superadas, levando-os a uma efetiva integração. Assim, não é de se estranhar que Gonzalo de Berceo, um castelhano, procure sublinhar a diferença entre os reinos.

A preocupação fundamental de Gonzalo de Berceo é, contudo, como já destacamos, alçar Millán à mesma categoria de santidade de Santiago. Neste sentido, apresenta, com alguns detalhes, a aparição milagrosa dos santos em meio à batalha. Segundo a VSM, os cristãos eram em menor número e, portanto, temiam que a derrota estivesse próxima (VSM 436). Porém, algo fantástico aconteceu:  

 Enquanto nesta dúvida estavam as boas gentes,
               voltaram para o céu sua atenção;
               viram duas pessoas, formosas e reluzentes,
               muito mais brancas que neves recentes
                                                                   (VSM 437).
[29] 

Ao descrever os santos, o autor não os particulariza. Assim, tanto millán quanto Santiago  são apresentados como figuras celestiais de faces angélicas, que desciam do céu montados em cavalos mais brancos que cristal e portando armas nunca vistas por homens, com pressa para atacar, com fúria, os mouros (VSM 438-439).[30]  Ou seja, na perspectiva de Berceo, ambos eram guerreiros e "matamouros".             

A diferença entre ambos, no relato, só é marcada pelos objetos particulares que portavam, além das próprias espadas. Santiago carregava, segundo a VSM, o báculo, um bastão, com a extremidade superior arqueada, usado pelos bispos, e a Mitra pontifical, uma espécie de chapéu  alto e cônico, fendido lateralmente na parte superior e com duas faixas que descem sobre os ombros, tal como os que são usados pelas principais autoridades eclesiásticas - papa, cardeais e bispos -  em solenidades pontificiais. Já Millán, trazia a cruz e um capuz caído nas costas, objetos ligados à vida monástica.

Os distintos objetos que os santos portavam não significavam que havia uma certa hierarquia entre eles. Como se tratavam de peças usadas no cotidiano eclesiástico e, segundo a tradição, Millán fora eremita e Santiago, apóstolo, é possível inferir, que ao selecionar tais complementos, o autor  não só se inspirou na biografia de cada um para representá-los, como também procurou  ligá-los, simbolicamente, às duas ordens da Igreja: a secular e a regular.

Ao incluir a Batalha de Simancas como um dos milagres efetuados por Millán, Gonzalo de Berceo queria afirmar o patronato do santo sobre Castela, motivando e justificando as doações ao mosteiro emilianense. Porém, não pôde ignorar o fato de que as peregrinações à Compostela atraíam a grande massa de peregrinos das mais diversas regiões e que Santiago era o  mais venerado da Península Ibérica. Neste sentido, não esquece a fama deste último, mas realça a tradição, não ignorando a sua presença, mas fazendo-o figurar, com destaque,  ao lado do santo que deseja engrandecer, unindo-os em um fato histórico. Parece que o poeta busca, ainda que sutilmente, apontar que uma peregrinação até a Galícia não poderia prescindir de uma visita a la Cogolla, já que Millán e Santiago, juntos, livraram os hispanos-cristãos dos mouros.

 

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Detalle del  ábside románico de la catedral de Santo Domingo de la Calzada

 

  Conclusão

 

                Rumo a Santiago, diversas rotas de peregrinação cruzavam La Rioja. A mais famosa, o Caminho Francês, passava pelas cidades riojanas de Logroño, Nájera e St.º Domingo de la Calzada. Desta forma, por ser uma região repleta de vias de comunicação, esta era uma terra de romeiros: recebia-os e os acolhia, bem como, provavelmente os  enviava.                                Devido, fundamentalmente, às peregrinações a Compostela, em La Rioja circulavam milhares de pessoas a cada mês, provenientes das mais diversas regiões. Por que não atraí-las para se dirigirem aos centros de peregrinação da região, como San  Millán de la Cogolla, onde se  encontrava o túmulo do patrono de Castela?                
Através de uma rota secundária que partia de Nájera, passava-se por Cardeñas, Badarán e Berceo, chegando ao mosteiro emilianense. No retorno, os peregrinos seguiam novamente por Berceo, alcançando Villar de Torre e Cirueña e retomando o Caminho Francês em Santo Domingo de la Calzada.
                Acreditamos que a proximidade do cenóbio emilianense do Caminho de Santiago foi utilizada, pelos monges de la Cogolla, como uma estratégia, dentre outras, para aumentar o fluxo de peregrinos e incrementar as doações.  Logo, não era interessante rivalizar com Santiago, mas sim atrair o tão grande número de romeiros que se dirigiam para Galícia mas desejosos, sobretudo, em realizar uma jornada espiritual, estando mais próximos de Deus a cada etapa e, portanto, buscando passar por diversos centros religiosos. 
               Segundo Brian Dutton, o mosteiro de San Millán de la Cogolla mantinha um hospital e uma igreja em Azofra, localidade ao oeste de Nájera, com o objetivo de  cuidar e dar sepultura aos peregrinos que se dirigiam a Compostela. É possível que neste local, bem como em outros edifícios ligados ao cenóbio emilianense, espalhados por diversos povoados e cidades de Castela e Navarra,  fosse estimulada a visita ao túmulo de San Millán. Provavelmente após 1230, esta propaganda era feita por meio da recitação, por monges ou jograis contratados, da própria VSM.
[31]
               Esta estratégia está presente no discurso de gonzalo de Berceo. Longe de negar a importância de Santiago, o autor a reafirma e usa a fama deste santo para engrandecer a Millán, atraindo, assim,  ofertas e peregrinos ao cenóbio emilianense. Em suas obras, portanto, não critica o santo apóstolo, nem procura descaracterizá-lo como milagreiro. Ao contrário,   busca elementos de identificação entre este e o mosteiro emilianense, seja através da figura de Maria, já que a ela estava dedicada a Igreja de Yuso;  exaltando a vida monástica como contraponto ao pecado; ou alçando Millán  ao mesmo patamar de glória que o primado de España.
              Conforme atestam a diversidade de grafites gravados nas paredes das igrejas emilianenses,
[32]  muitos peregrinos, de fato, desviaram-se do Caminho Francês para visitar os lugares santos ligados à San Millán. Ou seja, a estratégia propagandista elaborada pelos monges de la Cogolla alcançou, ao menos pelo o que atestam os vestígios materiais, seus objetivos.

 
 

 Bibliografia

  Textos Medievais Impressos

 GONZALO DE BERCEO.  Obra Completa.  Coordenada por Isabel Úria Maqua.  Madrid: Espasa-Calpe, 1992.

 Obras Completas. Estudo e edição critica por Brian Dutton.  2 ed. Londres: Tamesis Books, 1984.  .1: La vida de San Millán de la Cogolla.

 HERGUETA MARTIN, N.(org.) Documentos referentes a Gonzalo de Berceo. Rev. Arch. Bib. Mus., Madrid, n. 10, p. 178-179, 1904.

 SAN JOSÉ,  J.P. (org.) Documentos del convento de San Millán de la Cogolla en los que figura Don Gonzalo de Berceo. Berceo, Logroño, n. 50, p. 79 - 93, 1959.

 

 Obras Gerais

GARIANO,  C.  Análisis estilístico de los Milagros de Nuestra Señora. Madrid: Gredos, 1965.

HENRIQUE UREÑA, P. La cuaderna via. Revista de Filología Hispánica, Buenos Aires, n. 7, p. 45-47, 1945.

MENENDEZ PELÁEZ, J. El IV Concílio de Letrán, la Universidad de Palencia y  el Mester de Clerecia.  Studium Ovetense,  Oviedo, n. 12, p. 27-39, 1984.

ÚRIA MAQUA, I. Sobre la unidad del mester de clerecía del siglo XIII. Hacia un replanteamiento de la  cuestión. In: GARCIA TURZA, C. (ed.) Jornadas DE Estudios Berceanos , 3, Logroño, 3 a 5 de dezembro de 1979.  Actas ...   Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1981. p.179-188.

ORLANDIS, J.  De Pastor a Taumaturgo: San Millán de la Cogolla. In: ORLANDIS, J. Semblanzas visigodas. Madrid: Rialp, 1992.

RUIZ DOMINGUEZ , J. A. El mundo espiritual de Gonzalo de Berceo.  Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1999.

 SINGUL, F. O Caminho de Santiago. A peregrinação Ocidental na Idade Média. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.

MARTÍN MARTÍN, J. L. La ruta comercial del Camino de Santiago.  Madrid: Historia 16,  1985.

Página da Web www.larioja.com/cultura

 


NOTAS

[1]  Sobre as peregrinações a Santigo de Compostela ver SINGUL, F. O Caminho de Santiago. A peregrinação Ocidental na Idade Média. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.
[2]  MARTÍN MARTÍN, J. L. La ruta comercial del Camino de Santiago. Madrid: Historia 16, 1985, p.7.
[3]  Estes documentos foram publicados por SAN JOSÉ,  J.P. (org.)  Documentos del convento de San Millán de la Cogolla en los que figura Don Gonzalo de Berceo. Berceo, Logroño, n. 50, p. 79 - 93, 1959, p. 81ss e HERGUETA MARTIN, N.(org.) Documentos referentes a Gonzalo de Berceo. Rev. Arch. Bib. Mus., Madrid, n. 10, p. 178-179, 1904.
[4]  A Universidade de Palência foi a primeira instituição do gênero fundada na Península Ibérica. Sobre esta universidade e sua relação com a produção literária castelhana do século XIII ver MENENDEZ PELÁEZ, J. El IV Concílio de Letrán, la Universidad de Palencia y  el Mester de Clerecia.  Studium Ovetense,  Oviedo, n. 12, p. 27-39, 1984 e ÚRIA MAQUA, I. Sobre la unidad del mester de clerecía del siglo XIII. Hacia un replanteamiento de la  cuestión. In: GARCIA TURZA, C. (ed.)   Jornadas DE Estudios Berceanos , 3, Logroño, 3 a 5 de dezembro de 1979. Actas ... Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1981. p.179-188.
[5]  A cuaderna via, também conhecida como tetrásforo alexandrino, são estrofes compostas por quatro versos de quatorze sílabas, divididos em dois hemistíquios simétricos, com acento rítmico na sexta sílaba e rima consoante.  Cf. HENRIQUE UREÑA, P. La cuaderna via. Revista de Filología Hispánica, Buenos Aires, n. 7, p. 45-47, 1945.
[6]   Gariano, C. Análisis estilístico de los Milagros de Nuestra Señora. Madrid: Gredos, 1965, p.29.
[7]  Além disso, o Mosteiro de San Millán de la Cogolla possuía uma Carta de Hermandad com o mosteiro silense, firmada em 1190 e confirmada em 1236.
[8]  Esta informação está presente em uma nota do ms. F, do século XIV, como referência a VSM 57.
[9]  DUTTON, B. Los moviles generales de la obra de Gonzalo de Berceo. In: GONZALO DE  BERCEO.  Obras Completas . Estudo e edição critica por Brian Dutton.  2 ed. Londres: Tamesis Books, 1984.    1: La Vida de San Millán de la Cogolla. p. 177-183, p. 179-180.
[10]  Sobre a biografia de San Millán ver ORLANDIS, J.  De Pastor a Taumaturgo: San Millán de la Cogolla. In: ORLANDIS, J..  Semblanzas visigodas.  Madrid: Rialp, 1992.
[11]  Gonzalo de Berceo usa as formas Guiralt e Guirald para nomear este personagem.
[12]   "...  era non bien senado: facié a las debeces follía e peccado, como omne soltero   que non es apremiado".
[13]  "...yogo con su amiga".
[14]  "...metióse al camino   con su mala hortiga".
[15]    García Turza , C. (ed.) Milagres de Nuestra Señora. In: GONZALO DE BERCEO. Obra Completa. Madrid: Espasa-Calpe, 1992, p. 608.
[16]  "ángel verdadero".
[17]  "Jacobo, fijo de Zebedeo".
[18]  "...que te cortes los miembros que facen el fornicio".
[19]  Estes versos permitem inferir que Gonzalo de Berceo era um homem culto, que possuía noções de Direito Romano.
[20]  " Yo esto mando   e dólo por sentencia: la alma sobre quien   avedes la entencia, que torne en el cuerpo,   faga su penitencia, desend qual mereciere,   avrá tal audïencia".
[21]  Berceo ainda  ressalta que este, apesar de ter recobrado a saúde, não recuperou os membros que cortou. E acrescenta um detalhe curioso: para que Guiralt pudesse urinar, no lugar de seus órgãos genitais ficou um buraco: "Era de lo ál todo   sano e mejorado, fuera de un filiello   que tenié travesado; mas lo de la natura   quanto que fo cortado, non li creció un punto,   fincó en su estado.  De todo era sano,   todo bien encorado, pora verter su agua   fincóli el forado;..."  ( Mil 212 e  213ab).
[22]  Segundo os Anales Compostelanos, a batalha de Simancas teria ocorrido no verão de 939, por ocasião de campanhas militares que opuseram os cristãos aos muçulmanos, que incluíram confrontos em Aza, Hacinas e Toro. Tal como aponta o texto berceano, estiveram envolvidos nesta guerra o califa Abderraman III (912 -961), o rei leonês Remiro II (930? - 951), o conde castelhano Ferrán Gonçálvez (930-970) e o rei García Sanchez I de Navarra (926-970). Sobre a historicidade dos fatos narrados por Berceo e a composição literária da VSM ver DUTTON, B.   Las fuentes de la Historia de los votos. In: GONZALO DE BERCEO.  Obras Completas . Estudo e edição critica por Brian Dutton... p. 231-249.
[23]  Obedecemos, neste texto, as grafias dos nomes próprios utilizadas por Gonzalo de Berceo.
[24]  DUTTON, B.  Las fuentes de la Historia de los votos. In: GONZALO DE BERCEO.  Obras Completas . Estudo e edição critica por Brian Dutton..., p. 231.
[25]  "..al que yaz' en Gallizia, de España primado" .
[26]  RUIZ DOMINGUEZ , J. A. El mundo espiritual de Gonzalo de Berceo. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1999, p. 80.
[27]  "Confessor es precioso, de Dios mucho amado, en vida e en muerte siempre fue adonado; qui mercet li pidió nunqa fue repoyado, en est pleit en qe somos serié buen advocado. Frontero es del regno, cuerpo envergoncado, padrón de espannoles el apóstol sacado; onrrémoslo, varones, démosli esti dado".
[28]  "...non seriemos com somos de tristicia menguados".
[29]  “Mientre en esta dubda sedién las buenas yentes,  asuso contra’l cielo fueron parando mientes;  vidieron dues personas fermosas e luzientes,  mucho eran más blancas qe las nieves rezientes” .
[30]  "Vinién en dos cavallos plus blancos que cristal. armas quales non vío nunqa omne mortal; el uno tenié croca, mitra pontifical, el otro una cruz, omne non vío tal. Avién caras angélicas e celestial figura, descendién por el aer a una grand pressura, catando a los moros con turba catadura, espadas sobre mano, un signo de pavura.
[31]  DUTTON, B. Los moviles generales de la obra de Gonzalo de Berceo. In: GONZALO DE  BERCEO.  Obras Completas ..., op. cit., p. 186.
[32]  Dados obtidos em  www.larioja.com/cultura.

 

    Santiago na obra de Gonzalo de Berceo:
reflexões acerca do caráter propagador da hagiografia medieval

  Prof.ª Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Mestre em História Antiga e Medieval (UFRJ)  e Doutora em História Social (UFRJ).
Professora Adjunto do departamento de História da UFRJ.
Uma das Coordenadoras do programa de estudos Medievais do IFCS-UFRJ.

 

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