|
||||||||
Resumo: O trabalho que se segue tem o intuito de expor algumas reflexões sobre o fenômeno da santidade na Península Ibérica, mais especificamente, na Castela do século XIII, através da breve comparação das virtudes encontradas nos protagonistas do Poema de Mio Cid e da Vida de Santo Domingo de Silos, El Cid e Domingo de Silos, respectivamente. Tais apontamentos fazem parte de um processo de pesquisa que resultou no nosso ingresso no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2007.
Palavras-Chave: Península Ibérica, Idade Média, Santidade
Abstract: The work that follows is an effort to discuss some thoughts on the phenomenon of holiness in the Iberian Peninsula, more specifically, in Castilla in the XIIIth century through a comparison of the virtues found in El Cid, the protagonist of the Poem of Mio Cid, and in Domingo de Silos, protagonist of Life of Santo Domingo de Silos. These notes are part of a thesis realized in our Masters Course at the Programme of Post-Graduate Studies in Comparative History of the Federal University of Rio de Janeiro.
Keywords: Iberian Peninsula, Middle Age, Holiness
|
||||||||
Introdução
O artigo que se segue, foi apresentado originalmente no XII Encontro Regional de História, promovido pela Anpuh-RJ, sob forma de comunicação, intitulada "Por que El Cid não é santo?": Subsídios para uma discussão sobre a santidade através da comparação das virtudes encontradas no Poema de Mio Cid e na Vida de Santo Domingo de Silos de Gonzalo de Berceo.2 As reflexões, aqui retomadas, ainda não foram, de todo, respondidas 3. Hoje, olhando com a distância que o tempo possibilita, foram até, em parte, modificadas, graças aos comentários e sugestões levantadas na época e pelo natural processo de amadurecimento pelo qual passamos.4 Tais apontamentos correspondiam, também, a uma fração de um trabalho individual que desenvolvíamos, juntamente ao projeto de pesquisa coletiva Hagiografia e História: Um Estudo Comparativo da Santidade,5 no qual o corte temático, por nós escolhido, permeou a construção de um pré-projeto que resultou no nosso ingresso como discente no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2007. O estudo do fenômeno da santidade, no medievo, aplaca vários tipos de abordagens e conceitualizações,6 tendo, ainda, como principais fontes de análise as hagiografías.7 No entanto, para este trabalho, utilizamos, além de um texto hagiográfico, um outro, cujo intuito não é religioso. Através desse cruzamento de fontes, discutiremos, a partir do questionamento: "Por que El Cid não é santo?",8 a presença de relações de poder no que chamaremos de "institucionalização da santidade". Nosso principal objetivo é entender, através das similitudes encontradas textualmente, a partir de uma breve comparação entre o Poema de Mio Cid e a Vida de Santo Domingo de Silos,9 como se faz necessário todo um emaranhado de fatores, para que a santidade se concretize formalmente no Medievo, pois, como demonstraremos, os dois personagens, salvo o intuito específico das obras nas quais figuram, são, preliminarmente, apresentados com virtudes similares que muito os aproximam. Seria a santidade a verdadeira distância entre os personagens Domingo de Silos e El Cid? Para responder a esta pergunta, faz-se jus explicitar em nossa análise, como e de que forma enxergamos a santidade e, por sua vez, o que entendemos como "virtudes".10
A santidade e as "virtudes"
Em primeiro lugar, ressaltamos que fazemos distinção entre os dois termos. Para nós, "virtudes" não é similar à santidade, mas elemento, muitas vezes, presente em seu processo escrito de elaboração, principalmente nas hagiografias, textos onde os santos quase sempre figuram com algum atributo que os difere dos outros personagens. Essa nossa conceitualização está associada à idéia de santidade da historiadora Sofia Boesch Gajano,11 que a entende como um fenômeno, fruto de uma construção, a partir de uma escolha de vida, tanto de um homem como de uma mulher, o que envolve, ainda, práticas de vida a partir de modelos como Cristo, por exemplo.12 Entretanto, cabe, ainda, salientar que, para uma melhor manipulação da nossa problemática sobre este tema, é necessário complementar que mesmo entendendo asantidade como uma construção, defendemos ser necessário o reconhecimento de um grupo ou grupos, para que esse atributo se concretize "oficialmente".13 Ou seja, há toda uma relação de poder inculcada dentro da construção dessa trajetória. É o que chamaremos de processo de institucionalização da santidade. Daí a ênfase que damos, com um mesmo peso à presença das "virtudes", que, para nós, é entendida e conceitualizada como um conjunto de qualidades (adjetivações) que tornam um personagem ou uma coisa (substantivos) diferenciados de outros, a ponto de ser considerado como um elemento único, singular dentro de um grupo.14 Consideramos que tais elementos são uma das chaves, para que a santidade seja encarada como fenômeno histórico-social, construído na vida do indivíduo e, complementamos, para que o sucesso da aventura pela busca da santidade se realize, ainda é necessário que este ser deveras "virtuoso" esteja inserido dentro de um contexto de interesses de um grupo ao qual ele será o representante mor, ou seja, não basta ser exímio ser humano, cheio de qualidades, também é necessário que haja um interesse por parte de um grupo para que a santidade seja formalizada.15 Dessa maneira, o fenômeno da santidade é visto por nós como: histórico, social, institucional e cultural. No entanto, cabe ressaltar que até o final do século XII a aclamação de um santo era prerrogativa dos bispos locais. Quando nos referimos a essa "institucionalização da santidade" pelas mãos da Igreja, referimo-nos ao período pós Latrão IV.16
As fontes17
Até o momento, apenas três manuscritos da VSD são conhecidos: S, H e E. Todos são cópias do texto original berceano. O manuscrito S é datado no século XIII e os outros dois são cópias realizadas no século XIV; S encontra-se no Mosteiro de Silos e se acredita que seja uma cópia feita em San Millán de La Cogolla por um monge de Silos. Esse manuscrito foi descrito e, posteriormente, publicado em 1958, pelo frei Alfonso Andrés. Já o manuscrito H trata-se de uma cópia do primeiro, provavelmente feita para o Mosteiro de San Martin de Madrid, comunidade religiosa filiada à de Silos. Alguns autores o denominam como "Códice de Monserrat", por ter sido conservado no Mosteiro de Nossa Senhora de Monserrat, em Madrid. Esse manuscrito encontra-se atualmente na Academia de la Historia. Por fim, temos o manuscrito E, que seria uma possível cópia do original de Berceo feita em San Millán de La Cogolla, entre 1300 e 1325, que atualmente, pertence a Real Academia Española de la Lengua. Labarta de Chaves reconstrói o texto original da VSD baseando-se nos manuscritos S e E. Graças a análises de documentos notoriais de Castela Medieval, autores como Brian Dutton e José María Izquierdo estabeleceram que Gonzalo de Berceo teria nascido entre 1195/ 1196 ou um pouco antes destes anos. Criado no Mosteiro de San Millán de la Cogolla, provavelmente, recebeu ali, na "escola" do mosteiro, sua primeira formação. Apesar de ter sido educado em um cenóbio, Gonzalo de Berceo não se tornou monge, mas optou por seguir a carreira eclesiástica, primeiramente, como diácono e depois como preste. Face às informações que temos, atualmente, devido a pesquisas conduzidas pelos nomes já citados e alguns outros estudiosos, não cabem dúvidas quanto à caracterização de Gonzalo de Berceo como um homem culto. O que derruba uma das muitas leituras historiográficas sobre o autor, como um clérigo ingênuo e com escasso conhecimento do latim; interpretação baseada em uma passagem da VSD em que Berceo se autodescreve: "ca non son tan letrado por fer otro latino" .18 A VSD foi composta por Gonzalo de Berceo, provavelmente, por volta de 1240, e é formada por três livros. Cada um desses livros corresponde a um momento da trajetória de santo Domingo de Silos: o primeiro começa com seu nascimento e a apresentação das virtudes que caracterizaram sua vida, enfoca, ainda, seu exílio, resultado direto do fato do santo não se dobrar aos caprichos do rei Garcia de Nájera, que é retratado no poema como uma pessoa sem valores morais; o segundo livro se encerra com a sua morte edificante e sua entrada no paraíso, em grande parte, graças a essa vida cheia de atitudes virtuosas; e, por fim, o terceiro livro engrandece ainda mais seu triunfo, pois Domingo de Silos é estabelecido como a ponte que liga Deus aos homens, transformando-o, assim, em um intercessor. Podemos observar, então, toda uma gradual ascensão por parte da personagem construída por Gonzalo de Berceo, o que comprova a coerência entre os três livros. Quanto aos aspectos formais da composição do poema-hagiográfico, encontramos:
O PMC trata-se de um texto anônimo, o que era muito comum no início do século XIII.20 Alguns pesquisadores divergem acerca da data de composição do PMC, porém, consta, ao final do único manuscrito preservado de meados do século XIV, uma data: "mes de mayo en era de mill e .cc xvl. años",21 ou seja, mês de maio na Era de 1245. Segundo Richard Fletcher e Colin Smith, a era espanhola de 1245 equivale ao ano de 1201 d.C.22 Há aqueles que defendem que ela corresponde ao dia em que a cópia foi concluída, alguns outros, como, por exemplo, Ramón Menéndez Pidal, datam a cópia em 1301 e não 1201. Contudo, de uma forma geral, ficaram estabelecidos, entre os especialistas em PMC, os anos de 1200/1202 para a composição do poema, provavelmente, a partir de alguma outra obra que tratasse sobre Rodrigo Díaz, o que, noentanto, não exclui sua originalidade, e 1207 para a cópia do poema concluída por Per Abbat.23 O PMC, em seu estado atual, é composto por 3.730 versos. Sabemos que falta uma folha no início do manuscrito e mais duas no interior, dessa maneira, podemos supor que o poema em seu estado original tinha, aproximadamente, 4.000 versos ou um pouco menos. O texto está dividido, assim como a VSD, em três partes que comumente são denominadas: Cantar del destierro (Cantar I), Cantar de las bodas (Cantar II) e Cantar de la afrenta de Corpes (Cantar III). O poema se conserva, como já ressaltado, em um único manuscrito preservado e está localizado atualmente na Biblioteca Nacional de Madri. Utilizamos a edição crítica elaborada por Colin Smith que em seu trabalho utilizou como auxílio a edição fotográfica do manuscrito original publicada em Madri em 1967 e a edição paleográfica de Menéndez Pidal publicada, pela primeira vez, em 1911.24 O primeiro cantar começa com o El Cid partindo para o exílio, juntamente com o seu séquito por ordem de Afonso VI. O cavaleiro deixa sua mulher e filhas sob os cuidados do abade de Cardeña, dando início, assim, às suas empreitadas militares. O segundo retrata suas campanhas na região do Levante e a conquista de Valência e se encerra com as bodas de suas filhas com os infantes de Carrión pelas mãos do rei Afonso VI. O terceiro cantar trata da restituição moral e financeira do Cid, já que suas filhas foram ultrajadas pelos infantes em Corpes, por motivo de vingança. O poema se encerra com o personagem atingindo todos os seus objetivos e tendo uma morte tranqüila como governante de Valência. Os três cantares demonstram a gradual ascensão heróica de Rodrigo Díaz.
As características virtuosas dos personagens e a construção da santidade através das relações de poder
Inúmeras foram as similitudes encontradas por nós no decorrer da pesquisa para a elaboração do nosso pré-projeto, e, ainda hoje, mesmo com um objetivo analíticodiferente em nosso mestrado, continuamos inventariando características que aproximam os dois personagens. No entanto, demonstraremos, resumidamente, apenas aquelas que se relacionam diretamente com o questionamento levantado neste estudo acerca do processo de institucionalização da santidade:
Ater-nos-emos, enfim, à pergunta que tanto envolve este trabalho: Por que El Cid não foi santificado assim como Domingo de Silos?. Alguns caminhos básicos podem ser percorridos, não para obter a resposta de tal questionamento, já que este postulado está conotado de múltiplas complexidades, mas para refletir um pouco sobre o fenômeno da santidade. Primeiramente, há de se pensar no objetivo das obras na qual figuram Domingo de Silos e El Cid como protagonistas e, talvez, alongar o corpus documental a outras, onde o segundo também está presente. O primeiro personagem figura num texto religioso, classificado como hagiografia, melhor ainda, chamá-lo de poema-hagiográfico, graças às suas características textuais, no qual o objetivo propagandístico, o teor do discurso religioso, etc, não devem ser renegados. O último, por sua vez, é umpoema épico ou, ainda, pode ser classificado como "literatura de corte (ou cortês)",[23] com claro intuito de exaltar um famoso personagem da região de Burgos que viveu num período conflituoso. É um poema possivelmente ligado à questão da educação cortês, da diversão nas Cortes, visando a rememorar os feitos guerreiros do lendário Rodrigo Díaz, o El Cid, sem contar, ainda, as linhas investigativas que interpretam o PMC como um escrito político, etc.27 Em segundo lugar, podemos nos questionar se a função social dos dois personagens, sendo um clérigo e o outro cavaleiro, poderia influenciar no fenômeno da institucionalização da santificação. Consultas realizadas, por nós, no banco de dados desenvolvido pelo projeto Hagiografia e História,28 dá-nos alguma segurança em afirmar que, mesmo sendo um número estritamente reduzido, não era impossível a santificação de reis, leigos e pessoas não vinculadas a ordens monásticas e religiosas na Península Ibérica durante os séculos XII e XIII. No entanto, percebe-se uma certa resistência nesse quesito, principalmente, quando se trata, especificamente, de cavaleiros. Não podemos, com isso, simplesmente inferir que a Igreja ignorava, ou não possuíam, um certo tipo de "projeto" no qual inseria a Cavalaria. O próprio pensamento eclesiástico, dentro da especificidade da região norte de uma França Medieval, estudada por Georges Duby desde sua tese de doutoramento,29 estipulou, por exemplo, um lugar a estes homens de armas, que segundo, ainda, o próprio medievalista, formavam uma sociedade, com seus códigos, regras e valores.30 As "três ordens" ou "três funções" elaboradas e semeadas por Adalberão, bispo de Laon e por Gerardo, bispo de Cambrai, nos anos vinte do século XI, demonstram-nos isso.31 Por fim, pode-se tentar entender os motivos para a não santificação de Rodrigo Díaz, à luz de sua comparação com todo o processo que envolveu a construção do fenômeno em Domingo de Silos. Se, antes, para nós, o fato deste figurar numa hagiografia e El Cid, não; como motivo inicial para a não santidade do último, isso toma uma proporção menor quando o vemos figurando dentro da Legenda de Cardeña, essa, por sua vez, escrita por monges e com objetivos, de certa forma, religiosos. 32 No entanto, a mesma acaba por ser inserida no escrito afonsino, que tinha o principal intuito de "registrar a história" de seu reino. Acreditamos, como já ressaltado, que um dos principais fundamentos, se não o principal, para a elevação de um indivíduo à condição de santo é o seu reconhecimento como tal por um grupo, e de uma forma geral, esse grupo deve ter uma representação considerável, a ponto de oficializar tal fenômeno usando, para isso, meios diversos. De maneira geral, dar a ele, no seio do convívio do grupo, valor incontestável. Nesse caso, para nós, a Igreja Medieval, era o "grupo" responsável por validar, oficialmente, o fim desse caminho aventureiro coberto de desafios e provações. Há de se considerar que esse nosso ponto de vista tem um aspecto mais abrangente sobre o fenômeno, sendo assim, conscientemente, ignoramos possíveis especificidades de processos de santificação no Medievo, fato inevitável, pelo menos, nesse momento de análise. Pois, como assinalado, as questões são: Por que El Cid nãofoi santificado? E, se a Igreja "manipula", na medida do possível, tal processo, quais são seus critérios?33 Abandonando um pouco a linha teórica baseada no conceito de identidade,34 podemos nos centrar no que poderíamos nomear como um certo tipo de "instrumento devocional para a santidade", que engloba, desde o culto ao indivíduo considerado santo 35 até o que este culto pode desenvolver: desde a fundação de igrejas à elaboração de hagiografias. Fixemo-nos, então, nesse último "instrumento", fruto da devoção à santidade, já que, no exemplo dos personagens Domingo de Silos e El Cid, foi esta produção que mais nos chamou atenção. A VSD é escrita por Berceo utilizando versos e rimas, aproximando-a, assim, às tradicionais "canções de gesta".36 No entanto, não podemos ignorar o fato de que, além de ser protagonizada e escrita por clérigos, tal obra foi praticamente feita por encomenda.37 No mais, o clérigo Domingo de Silos já figurava como personagem em outra Vita, que inclusive foi base do texto berceano.38 O caso do cavaleiro burgalês é bem mais complexo, pois a obra onde figura está mais relacionada a uma tradição literária não-religiosa. Contudo, podemos inferir que, assim como Domingo de Silos, El Cid segue um certo tipo de "padrão de santidade", pelo menos no que diz respeito à sua comparação com a construção textual hagiográfica do clérigo da VSD: há registro de um culto organizado à sua pessoa e esse, da mesma maneira que o de Domingo de Silos, organizado por monges (também beneditinos) e, tais monges produzem uma legenda com caráter hagiográfico relatando os milagres do cavaleiro, etc. Assim, questionamo-nos, mais uma vez, sobre qual o critério adotado pela Igreja (como instituição que detinha o direito privilegiado para tal) para a santificação de um indivíduo. Sabe-se e uma grande demanda de estudiosos defende essa perspectiva, que a santificação não era simplesmente um ato de aprovação celestial e eclesiástico, já que estavam envolvidos no processo mais interesses e relações de poder do que supomos.39 Defendemos que, não só no caso do santo silense como ainda no do cavaleiro burgalês, os interesses religiosos, políticos, financeiros, etc; foram as principais "molas mestras" para a conclusão do fenômeno nos dois casos.40 Ressaltamos, também, que sobre El Cid há notícias da abertura de um processo de canonização defendido por Felipe II no século XVI, os motivos são, por nós, desconhecidos, tanto para o pedido de santificação feito pelo monarca como para seu arquivamento pelo papado.
Conclusão
Identificamos, então, dentro da trajetória da santidade, no decorrer de todo o percurso, quase "aventureiro", deste fenômeno, primeiro: que as "virtudes" foram essenciais, mas não primordiais; segundo: mesmo um grupo religioso, como no caso dos monges beneditinos de Cardenã, ter adorado o personagem (El Cid) como santo para propagar o nome do mosteiro e obter donativos, sua expressão não era tanta quanto a funcionalidade da santificação de Domingo de Silos para a Igreja. A santidade não é santidade, se não houver um objetivo fundamentado nisso. Não basta simplesmente ser santo, mas reconhecido por isso. E esse reconhecimento é institucionalizado pela Igreja, detentora e representante do divino na terra. Como podemos concluir, com o que nos baseamos, que o que separa, aparentemente, neste caso específico, Domingo de Silos de Rodrigo Díaz de Vivar, não é a santidade, mas a formalização dessa santidade. É possível que tenha havido uma aclamação popular em torno de El Cid, assim como houve em torno de Domingo de Silos. É válido supormos - e não são de hipóteses que desenvolvemos a História? - que possa ter ocorrido identificação popular e, até mesmo religiosa, com a figura cidiana, pois, se fosse impossível, reis e rainhas ibéricos do século XIII não teriam sido santificados.41 A santificação a partir de finais do século XII e início do XIII é poderio da Igreja. Vemos, então, a construção da "institucionalização da santidade". O sucesso da "aventura da santidade" e o reconhecimento de tal feito estavam nas mãos do clero, atento para os objetivos e funções, que consideramos sócio-culturais, que teria aquele indivíduo ao ser considerado santo. Desta maneira, as relações de poder são exercidas dentro de tal fenômeno, dentro da representação do homem ou mulher cuja exemplaridade é nula se não for reconhecida pela Igreja. Fica, ainda, a lacuna que começa a ser preenchida pela historiografia sobre como a Igreja Medieval enxergava e inseria a Cavalaria dentro do âmbito da santidade. Questionamo-nos: Como lidava com seus próprios interesses e os interesses da Cavalaria?42 A santidade, durante algum tempo, dentro da construção da nossa pesquisa histórica, principalmente por trabalharmos com um texto hagiográfico no qual o personagem principal que temos por objetivo é Domingo de Silos,43 exerceu, até então, um trabalho reflexivo chave para nós. Daí a necessidade de nos aprofundarmos mais dentro do tema e entendê-lo à luz da historiografia, ora num enfoque cultural, ora social. Por fim, quanto a análise para a construção de uma figura santa de El Cid, ainda se encontra em aberto, no vazio. Poucas são as obras que tratam sobre tal tema, poucos os pesquisadores que se aventuraram diretamente na tentativa de entender, seja pela História Cultural ou pela História Social, a trajetória cidiana como personagem construído textualmente dentro da Legenda de Cardeña (ou Primera Cronica General, já que a Legenda figura, em partes, inserida nesta última, não havendo notícias se há registros de manuscritos seus preservados no próprio Monastério de Cardeña). Nosso objetivo, como historiador, foi lançar luz a esse possível debate que ainda figura dentro do que Paul Veyne muito bem denominou de "a natureza lacunar da História".44
NOTAS
1 Mestrando pelo PPGHC-UFRJ, Pesquisador Colaborador no Programa de Estudos Medievais da UFRJ e no projeto coletivo Hagiografía e História: um estudo comparativo da santidade. E-mail para contato: brunoalvaro @ yahoo.com.br. 2 ALVARO, Bruno G. "Por que El Cid não é santo?": Subsídios para uma discussão sobre a santidade através da comparação das virtudes encontradas no Poema de Mio Cid e na Vida de Santo Domingo de Silos de Gonzalo de Berceo. In: CALAINHO, Daniela; KNAUSS, Paulo (Orgs.). Caderno de Resumos e Programação. Usos do Passado. XII Encontro Regional de História (14 a 18 de agosto de 2006). Rio de Janeiro: Anpuh-Rio/ Universidade Federal Fluminense, 2006. p. 216. 3 Ressaltamos que este artigo apresenta as análises de uma pesquisa ainda em curso. 4 Somos gratos às inúmeras conversas travadas na época e posteriormente. Principalmente com os amigos Leandro Duarte Rust e Thiago de Azevedo Porto. 5 Tal projeto de pesquisa é coordenado pela Profa. Dr. Andréia C. L. F. da Silva e encontra-se registrada junto ao Sigma-UFRJ (5013) e no diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq como uma das linhas de pesquisa do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. 6 Citamos como exemplo os trabalhos mais difundidos e ainda discutidos no Brasil até o momento sobre o tema santidade no Medievo: BOESCH GAJANO, Sophia. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 2 Vol. Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. II. pp., 449-464; VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (Dir). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989. pp., 211-230. 7 Hagiografia é um termo que possui raízes gregas (hagios = santo; grafia = escrita) e desde o século XVII é utilizado para designar tanto o estudo crítico dos diferentes aspectos ligados ao culto aos santos, bem como os textos que têm como temáticas centrais os santos e seu culto, entre eles, vidas, tratados de milagres, relatos de trasladações, viagens espirituais, martirológios etc. Cf. VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y Culto a los Santos en la Hispania Visigoda: Aproximación a sus Manifestaciones Literarias. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, 2002. 8 Questionamento que, no período em que este trabalho foi apresentado originalmente, suscitou inúmeras críticas e alguns debates que foram de extrema pertinência para nossas reflexões. 9 Mesmo que, aparentemente, este trabalho apresente uma essência comparativista, não aplicaremos o Método Comparativo em História, nos centraremos, sim, em discutir a questão do caminho a ser percorrido para o alcance da santidade. Alertamos, ainda, que a partir deste ponto utilizaremos as siglas VSD e PMC para Vida de Santo Domingo de Silos e Poema de Mio Cid, respectivamente. 10 No decorrer do texto utilizaremos virtude no plural por entendermos que corresponde a um emaranhado de adjetivações (qualidades) atribuídas a um elemento (substantivo). 11 BOESCH GAJANO, Sophia. Op. cit. p., 449. 12 A autora trabalha "modelo" no sentido de referência, ou seja, alguém a ser imitado. 13 Pelo menos, no que diz respeito ao reconhecimento da Igreja. 14 Construímos nossa conceitualização a partir das leituras das teses foucaultianas, a quesito de citação, sugerimos: FOUCAULT. Michel. As Palavras e As Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1985. 15 Nesse caso, a Igreja. 16 Considerado por alguns historiadores como o "maior e mais importante" Concílio. Foi convocado por Inocêncio III em abril de 1213, teve como principais objetivos ocupar-se da reforma moral, esclarecer e homogeneizar a doutrina da Igreja. Cf. LOYN, Henry R. (Org.). Concílios de Latrão. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. pp., 233. 11 17 Utilizamos, basicamente, em nossa pesquisa e para elaboração deste artigo as seguintes edições críticas: GONZALO DE BERCEO. Vida de Santo Domingo de Silos. Edición de Teresa Labarta de Chaves. 3a Ed. Madrid: Castalia, 1981; ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. Madrid: Ediciones Catedra, 2001. 18 GONZALO DE BERCEO. Vida de Santo Domingo sw Silos. Vs. 6. p., 59. 19 FRAZÃO DA SILVA, Andréia C. Lopes. Literatura e História: Reflexões a partir de um Estudo de Caso. Redes. Rio de Janeiro, n. 3, set./dez. p. 14-26, 1991. pp., 11. 20 Contudo, atualmente, em nossa pesquisa no mestrado temos defendido a tese de que o clérigo Per Abbat foi o autor da obra. Tal hipótese também é defendida pelos hispanistas Timoteo Riaño Rodríguez e María del Carmen Gutiérrez Aja. Cf. GUTIÉRREZ AJA, María del Carmen; RIAÑO RODRÍGUEZ, Timoteo. El Cantar de Mío Cid. 2: Fecha y Autor del Cantar de Mío Cid. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2006. Disponível para download em: <http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=11991>. 21 ANÓNIMO. Poema de Mio Cid... Vs. 3732-3733. pp., 276. 22 Há todo um debate sobre estas datas, sobre o qual não queremos nos ater neste momento. Sobre essa questão ver: GICOVATE, Bernardo. La Fecha de Composición del Poema de Mio Cid. Hispania, n. 39, 1956, pp., 419-422; SMITH, Colin. Some Personages of the Poema de Mio Cid and the Date of the Poem. The Modern Language Review, n. 66, 1911, pp., 580-598. MONTERO REGUERA, José. Sobre el Autor y la Fecha de Composición del Poema de mio Cid: Ultimos Años de Investigación. Tropos 17, n. 1, 1991, pp., 18-28. 23 Ressaltamos, mais uma vez, que temos ido de encontro a estas teses, defendendo que o PMC foi composto em 1207 por Per Abbat. Por questões óbvias esta discussão ficará de fora do presente artigo, por não ser este nosso objetivo principal. 24 A edição Fac-similar pidalina para o PMC encontra-se disponibilizada no sítio da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes: http://www.cervantesvirtual.com 25 Referimo-nos tanto às trajetórias apresentada nos textos como, também, a suas trajetórias históricas. 26 Cf. GUENÉE, Bernard. Corte. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 2 Vol. Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. I, pp., 269-281, principalmente as páginas 273 e 274. Ver ainda: ALVAR, Carlos; ALVAR, Manuel. Épica Medieval Española. Madrid: Cátedra, 1991. 27 HARNEY, Michael. Class Conflict and Primitive Rebellion in the Poema de Mio Cid. Olifant, n. 12, 1987, pp., 171-219;_. Social Stratification and Class Ideology in the Poema de Mio Cid and the Chanson de Roland. In: KAGAY, Donald J.; SNOW, Joseph T (Eds.). Medieval Iberia: Essays on the History and Literature of Medieval Spain. New York: Peter Lang, 1997. pp., 77-102; HART, Thomas R. Movilidad Social, Rebelión Primitiva y la Emergencia del Estado en el Poema de Mio Cid. In: RAMON RESINA, Joan. Mythopoesis: Literatura, Totalidad, e Ideología. Barcelona: Anthropos, 1992. pp., 65-101;_. Kinship and Polity in the Poema de Mio Cid. In: LAFAYETTE, West (Ed.). Purdue Studies in Romance Literature. Purdue University Press, 1993. 28 Banco de dados é o inventário das biografias de santos e beatos da Península Ibérica organizado pelos bolsistas do referido projeto coordenado pela Profa. Dr. Andréia Frazão. 29 DUBY, Georges. La Société aux XIe et XIIe Siècles dans la Région Mâconnaise. Tese de Doutoramento defendida em 1952. Apud. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Unesp, 1997. O medievalista também fala sobre sua tese no livro:_. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./ Ed. UFRJ. p., 67 e 68. 30 Ver: DUBY, Georges. A Sociedade Cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989; _. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995 e ainda: FLORI, Jean. La Caballería: Madrid: Alianza, 2001;_. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 2 Vol. Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. I, p. 185-199. 31 DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. 32 A partir da trajetória que percorremos com a leitura de artigos e outros emaranhados de fontes como contrapontos, o livro do historiador inglês Richard Fletcher nos chamou atenção, pois o mesmo comenta brevemente o registro de um culto em torno do corpo e relíquias do cavaleiro burgalês. Fletcher, ainda, reproduz o milagre atribuído ao Cid, o que pode ser encontrado, registrado na Primera Cronica General. Cf. FLETCHER, Richard. Em Busca de El Cid. São Paulo: UNESP, 2002; ALFONSO X. Primera Cronica General de España que mandó componer... 3a Ed. Edición de Ramón Menéndez Pidal. Madrid: Gredos, 1911 e, ainda, PEÑA PÉREZ, Francisco Javier. Los Monges de San Pedro de Cardeña y el Mito del Cid. In: IGNACIO DE LA IGLESIA DUARTE, José (Coord.) Atas... (XIII Semana de Estudios Medievales). Nájera: Instituto de Estudios Riojanos, 2003. pp., 331-344. Devemos levar em consideração que aparentemente o intuito de tal organização de um culto cidiano, deve-se ao fato de uma expressiva crise financeira do qual passava o monastério de Cardeña. 33 Claro que não ignoramos o fato de que nem sempre a Igreja conseguiu e consegue coordenar (dominar, talvez) livremente todo o processo que leva um indivíduo ao reconhecimento da santidade. 34 Cf. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: Uma Introdução Teórica e Conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e Diferença: A Perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. pp., 7-72. 35 Seja pela própria Igreja ou um culto de origem popular. 36 DUTTON, Brian. Gonzalo de Berceo y los Cantares de Gesta. Berceo, n. 77, 1965, pp., 407-416. 37 GARCÍA DE LA BORBOLLA, Ángeles. Santo Domingo de Silos, El Santo de la Frontera: La Imagen de la Santidad a Partir de las Fuentes Hagiográficas Castellano-leonesas del Siglo XIII. Anuario de Estudios Medievales, v. 31, n.1, 2001, pp., 127-146. 38 Rever item "As fontes". 39 Não só de ordem religiosa como temporal. 40 Oficializado para o primeiro e "adormecido" no caso do segundo. 41 Ver, por exemplo o caso do monarca castelhano Fernando III. 42 Conferir os artigos: MACGREGOR, James B. Negotiating Knightly Piety: The Cult of the Warrior-Saints in the West, ca. 1070 - ca. 1200. Church History, v. 73, n. 2, 2004, pp., 317-345; ALVARO, Bruno G. A Santidade Cavaleiresca: Algumas Reflexões. In: FRAZÃO DA SILVA, Andréia Cristina Lopes; SILVA, Leila Rodrigues (Orgs.). Atas... (VI Semana de Estudos Medievais). Rio de Janeiro:PEM-UFRJ, 2005, pp., 79-85. 43 Que é, por sua vez, um santo reconhecido pela Igreja. 44 VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Brasília: EdUNB, 1999.
|
||||||||
|